Alexandre Conefrey – Museu da Electricidade
The Pit: Dois Abismos – um poço fitando o céu
> 5 de abril, 2015
Museu da Electricidade (Curto Circuito, Espaço Arte–Tecnologia)
Curadoria: João Pinharanda
The Pit: Dois Abismos – um poço fitando o céu é a primeira exposição de gravura de Alexandre Conefrey. Comissariada por João Pinharanda, a exposição explora o confronto do artista com uma cadeia de impossibilidades do mundo interior e exterior, material e espiritual, através do exercício virtuoso e violento sobre as chapas de cobre da gravura, procurando o corpo e a sua superação. O título remete para uma citação do Livro do Desassossego de Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa. Conefrey, conhecido como desenhador experimenta nesta seleção de trabalhos a técnica da gravura, que tem sido recuperada por vários artistas contemporâneos. Desde sempre a sua obra apresentou uma forte presença de elementos bélicos estetizados de uma forma muito precisa, e por trabalhar com minúcia a aguarela e o guache, por vezes próximos da iluminura. A violência presente na sua obra surge agora, explicitada nos próprios gestos de trabalho.
O título como abismo do trabalho | João Pinharanda
Na apreciação de uma obra de arte, somos por vezes tentados a perguntar se foi o seu título que a precedeu (funcionando como orientação ou programa de trabalho), se surgiu como evidência posterior face aos resultados desse mesmo trabalho e processo ou se, de modo mais perverso, influenciou, a posteriori, o trabalho. A especulação que desencadearmos configura um modelo de interpretação da obra, é já uma etapa da sua interpretação.
Neste conjunto de 22 gravuras há uma série de dados (aqui é-nos indiferente que sejam anteriores ou posteriores ao ponto determinado em que a obra se dá a ver ao espectador) que devem ser convocados para análise: evidentemente, as formas; evidentemente, as cores; evidentemente, as técnicas específicas de gravação (verniz mole, duro, água-tinta, spit-bite, monotipia); e ainda, as dimensões, o número de provas, a solução de emolduramento, a montagem; e, inevitavelmente, o título.
As técnicas condicionam (não com qualquer sentido negativo) o artista no desenvolvimento das formas. De facto, as soluções encontradas derivam sempre das possibilidades e disponibilidades das técnicas de representação utilizadas. Se neste caso lhes damos mais atenção, deve-se isso ao facto da gravura se ter tornado menos familiar ao espectador do que a pintura, o desenho ou a fotografia; o próprio artista aprofundou a sua relação com elas ao longo deste trabalho. Alexandre Conefrey domina totalmente a prática do desenho. Aqui, contudo, tratava-se de desenhar sobre um material (chapa de cobre) estranho à lisura (mesmo a mais fina) e à macieza (mesmo a mais pesada) do papel; e com instrumentos muito diversos dos lápis ou carvões, mesmo os mais duros. Alexandre Conefrey tinha já usado inesperados instrumentos para enfrentar o papel: com as lâminas da tesoura e do x-acto tinha definido, em papel, linhas, planos e formas (To cut a long story short, Galeria Giefarte, Lisboa, 2012 e Plus, Galeria Miguel Nabinho, Lisboa, 2013). Agora, intervém num meio que resiste a todo o tipo de inscrição menos à das lâminas e dos ácidos corrosivos.
A dureza e resistência dos meios, o empenho físico inevitável, a violência necessária ao processo de trabalho reencontram algumas características essenciais ao sentido de conjunto da obra de Alexandre Conefrey: não apenas por referência às recentes experiências de corte ou perfuração do papel; mas, mais profundamente, por referência temática e poética, ou seja, à sua longa interrogação sobre os desastres da guerra e os seus protocolos estéticos e visuais (Os últimos dias, CAM/FCG, Lisboa, 2000 ou Hide and seek, Galeria Pedro Cera, Lisboa, 2004).
No entanto, os meios (a chapa, os buris, os ácidos) e os modos (enfrentar a reprodutibilidade dos objectos artísticos investindo na sua diferenciação, através da monotipia que individualiza cada “cópia”) impõem notáveis diferenças formais quer em relação à minuciosa figuração militar que celebrou a obra de Alexandre Conefrey no início da sua carreira quer à gestão austera (ou irónica?) que em certa altura fez do decorativismo floral (Lyrica, Galeria Miguel Nabinho, Lisboa, 2007 e Que horas são?, Giefarte, Lisboa, 2011) quer ao já referido rigor geométrico dos seus mais recentes desenhos.
Regressemos ao título da série como meio de apresentarmos as gravuras. O título inicia-se em inglês (por razão familiar e formação cultural Alexandre Conefrey pensa dominantemente nessa língua), com “The Pit”, e prossegue em português, dando-nos a pista da sua tradução mas criando um desdobramento inesperado e abismal de sentidos que confirma o trabalho plástico a que se refere. O complemento de título diz o seguinte: “dois abismos – um poço fitando o céu”. Trata-se de uma citação truncada do Livro do Desassossego, de Bernardo Soares/Fernando Pessoa. Na sua versão completa escreveu o poeta: “Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu”. Este “Nós”, sou Eu e são todos os Outros, condenados a uma divisão que determina à Humanidade um destino de impossibilidade: “Nós nunca nos realizamos”. Cada um de nós nunca se realiza perante si mesmo, dividido que está entre duas dimensões opostas (ar e água / cimo e baixo / espírito e corpo) por isso simétricas – no caso da imagem pessoana, um céu e um poço: a infinitude do céu, o limite do poço. Se pensarmos que o poço fita o céu, espelhando-o, essa diferença de escala e de capacidades de realização agudiza-se ainda mais. É o poço que Alexandre Conefrey convoca, não o céu.
Embora saibamos que nele se pode espelhar o céu, Alexandre Conefrey trabalha sobre o poço, o que tapa a possibilidade de céu. Cada poço é um omphalos (umbigo) da Terra descendo para o seu centro, é uma coluna invertida buscando um lençol de água, as suas paredes são húmidas e rugosas, a sua água subterrânea, negra, apenas depois de trazida à superfície se torna (ou não) inocente e clara. Surpreendemos nestas imagens simulações de cortes geológicos na terra que podem ser também cortes histológicos num ser humano. Estas imagens tornam ambos (Terra e Homem), também, metáforas simétricas: ambos admitem (ou necessitam) nos seus corpos a perfuração dos poços, seus segredos e exsudações. Há vegetações hirsutas agarradas às pedras dos poços e tufos pilosos nas dobras dos corpos, há águas limpas e sujas, secreções de suor e de geada, de sexo e chuva, há rugas e lamas, pedras soltas e pequenas feridas. Desce-se sempre mas estaca-se de súbito. Ao forçar a mão sobre as chapas de metal, Alexandre Conefrey imprimiu velocidade e violência a traços que fizeram do corpo uma paisagem. Cada imagem trata de construir uma micro-paisagem: o que é um zoom surge como uma panorâmica, o particular serve de referência ao geral.
Ciente da impossibilidade de unir os dois abismos ou de ocupar esse espaço entre as coisas, de fazer a síntese, o artista não foi / não quis ser céu fitando o poço; mas será que foi / quis ser poço fitando o céu? E em relação a estas imagens nós, que as vemos de fora, de cima, podemos colocar-nos no papel de sermos o céu que elas espelham? Ou o poço que vemos é o poço que habitamos? E onde está, nele, o espelho de água capaz de se fazer espelho do céu? Concluímos a resposta à nossa interrogação inicial: Alexandre Conefrey não fitou o que quer que seja, trabalhou desde o seu próprio corpo, escavou ele mesmo estes poços como quem perfura a terra, olhando para baixo, para as chapas, riscando-as, elidindo as imagens exteriores, até os ácidos, no momento chave do trabalho da gravura, negarem ao cobre toda a sua capacidade de serem reflexo das imagens do mundo. E o título, que não só nasceu do trabalho como parecia complementá-lo, acabou por tomar conta dele, por se virar contra ele, precipitando-o no seu abismo de sentidos. Contrariando aquilo que ainda punha grandeza na impossibilidade formulada por Pessoa, o que esta exposição nos diz é que somos um poço que fita um poço, um buraco cego, um destino sem espelho de céu que nos iluda.
João Pinharanda | Lisboa, 14 novembro 2014
+ info:
Alexandre Conefrey nasceu em Lisboa em 1961, onde vive e trabalha. Fez o curso de desenho no Ar.Co, em Lisboa entre 1993 e 95 e foi bolseiro no Royal College of Art, em Londres. Já apresentou as suas obras em várias exposições individuais, como por exemplo Mockingbird, Casa Museu Nogueira da Silva, Galeria do Jardim, Braga, 2014; Plus, Galeria Miguel Nabinho, Lisboa, 2013; To cut a long story short, Giefarte, Lisboa 2012; Hide and Seek, Galeria Pedro Cera, Lisboa, 2004; Andrew Mummery Gallery, Londres, Reino Unido, 2000; Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1999; Galeria Alda Cortez, Lisboa 1996. Participou também em exposições coletivas como Animalia e Natureza na Coleção do CAM, Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 2014; Abecedário – 40 Anos do Ar.Co, MNAC- Museu do Chiado, Lisboa, 2013; Traços, Pontos e Linhas_desenhos da Coleção António Cachola, Museu de Arte Contemporânea de Elvas, Elvas, 2012; O Fio Condutor: Desenhos da coleção do CAM, CAM, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2010; Guardi – A Arte da Memória, Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2003; EDP Arte, Prémio Desenho/ Prémio Pintura – II edição, Fundação de Serralves, Porto, 2001, entre outras. As suas obras estão presentes em diversas coleções: AR.CO; Caixa Geral de Depósitos, Lisboa; CAM, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Coleção António Cachola; Ministério dos Negócios Estrangeiros; Fundação Carmona e Costa; Coleção de Arte Fundação EDP; e diversas coleções privadas.
(C) Textos e imagens: cortesia da Fundação EDP, 2015.