O Tempo e o Modo, para um retrato da Pobreza em Portugal

> 27 Fevereiro, 2015 – Pavilhão 31 (Hospital Júlio de Matos, Lisboa)

Um projecto de Paulo Mendes e Emília Tavares

Trabalhos de Gustavo Sumpta, Hugo Canoilas, João Tabarra, Margarida Correia, Maria Trabulo, Nuno Ramalho, Pedro Barateiro e Renato Ferrão

Contribuições de Augusto Brázio, Nelson D’Aires, Paulo Pimenta, Pedro Ventura, Valter Vinagre

Investigação de Frederico Agóas, José Neves e Rita Sá Marques

Fogos Cruzados | Isabel Nogueira

No Pavilhão 31 do Hospital Júlio de Matos (Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa) inaugurou uma exposição sugestivamente intitulada O Tempo e o Modo, Para um Retrato da Pobreza em Portugal. Trata-se de um projecto de Paulo Mendes e de Emília Tavares, no qual intervêm os seguintes artistas: Gustavo Sumpta, Hugo Canoilas, João Tabarra, Margarida Correia, Maria Trabulo, Nuno Ramalho, Pedro Barateiro e Renato Ferrão. Segundo os organizadores, esta exposição «(…) é uma proposta de investigação e de criação, através de documentação escrita, impressa, fotográfica e de uma série de novos trabalhos artísticos, sobre a Pobreza em Portugal, sendo o resultado de toda esta pesquisa documental e visual apresentada numa exposição e registada num livro. (…) Este projecto tem como principal objectivo contribuir para uma reflexão e visão histórica das formas de pobreza, desde o século XIX até à actualidade, nas suas mais variadas facetas». Está, por conseguinte, definido o objecto de trabalho.

Sobre um chão com moedas de Euro coladas, cor de cobre, vamos pisando as linhas do dinheiro, que se ramificam por todo o espaço expositivo. Migalhas de um labirinto, talvez. Por este espaço, um pouco comprimido com informação, vemos trabalhos em registos bastante diferentes, desde o vídeo, à fotografia, a notícias da imprensa, a objectos do quotidiano, ou até mesmo a utilização de capas de discos em vinil, os quais evocam, por exemplo, um período temporal de forte emigração. De facto, os derradeiros anos do regime corporativo demonstravam uma crise crescente, inclusivamente espelhada na própria diminuição dos salários reais, entre 1971 e 1973, e consequente agravamento dos conflitos sociais. A emigração rumo à Europa – especialmente rumo a França e à República Federal da Alemanha – atingiu, em 1970, o seu ponto mais elevado. À crise política e económica, agudizada pela crise petrolífera mundial de 1973, juntava-se a crise social, num país cada vez mais fechado e francamente triste. Pobre também em sonhos.

Em 1969, os estudantes tinham vindo para a rua contestar o regime opressor, assistindo-se, em 1972, a um reforço da repressão e da censura, bem como das prisões políticas. A luta clandestina contra o regime intensificou-se nos meios intelectuais, estudantis, operários e mesmo militares. Neste âmbito, diversas publicações assumiram um certo carácter despertador, digamos, tais como O Tempo e o Modo: Revista de Pensamento e Acção, cujo nome e princípio operativo serve de mote a esta exposição.

Depois seguiu-se a almejada Revolução de 1974, com todos os seus contornos e problemáticas, nomeadamente a estabilização na democracia e a necessidade de construção de um país que vivia pleno de urgências. Mas também aconteceram ainda conquistas fundamentais, espelhadas na Constituição de 1976. Todavia, as fragilidades do país têm vindo a agudizar-se nos últimos anos. Vivemos uma crise grave. E não apenas a nível económico e financeiro, mas também a nível social e mesmo cultural. E neste ponto evidentemente que temos de entroncar com o que passa no Ocidente e na possibilidade de falência do designado projecto da modernidade. Falência esta já evocada, desde os anos 70 do século XX, por pensadores, como Jean François Lyotard.

Os últimos tempos têm sido ameaçadores para este projecto, de raiz iluminista. Não apenas espelhados na pobreza e na fome, mas também nos atentados terroristas. As últimas notícias informam a utilização de crianças pequenas. Não há grandes palavras para descrever tal coisa. Indescritível. Contudo, previsível. O caso do jornal francês, Charlie Hebdo, constituiu mais um rastilho de uma série de ataques e contra-ataques, efectivos, potenciais, morais, religiosos, de tudo um pouco. Sobretudo ancorados no medo, na incompreensão – relacionada com o medo –, na ignorância, na escassez de mundo. Ocidente e Oriente, guerra religiosa.

‘Jihad’ não quer dizer necessariamente ‘Guerra Santa’. Reporta-se mais a uma guerra de fé, interior, de decisão, com consequências exteriores, claro. Perigosas. Abomináveis, mesmo. Mas os conceitos acabam por aparecer recorrentemente próximos e conectados. A ‘Guerra Santa’ apareceu num contexto de uma perda de autoridade absoluta, o que levou a uma espécie de deriva, de perdição, após o tempo clássico. Esta perda, este tempo designado por ‘bárbaro’, conduziu à insegurança e a uma certa desorientação, só superadas pela acção da Igreja católica. Nos séculos XI-XIII assistiu-se à expansão da Cristandade – a Respublica Christiana – e ao desenvolvimento das instituições de paz que regulamentavam a chamada Paz de Deus. A guerra era sacralizada através das cruzadas, a partir de 1095. O objectivo oficial era a reconquista de Jerusalém, libertando o Túmulo de Cristo. Sabemos, todavia, que as cruzadas acabariam por degenerar a sua mística religiosa em política e económica. E, por estranho que pareça, não iam apenas guerreiros. Iam mulheres e crianças, numa massa de miséria humana, sem ocupação ou rumo, e que atravessava a Europa.

Nestas vicissitudes da História, estranhamente, o tempo áureo do Tribunal do Santo Ofício e dos Autos da Fé aconteceu não na Idade das Trevas (Idade Média), mas na Época Moderna. Esfolavam-se pessoas enquanto se ouviam cânticos divinos e encantatórios. A arte, a dor, a crueldade, a religião. Todos perigosamente juntos. Confusos. Paralelamente, emergira o movimento que acabaria por travar, a seu tempo, este processo de crueldade e ignorância à causa de uma interpretação de um texto sagrado: o humanismo. A própria evolução impressionante nas artes aconteceu na sequência do longo Concílio de Trento e do estabelecimento da propaganda católica, contra-reformista, com o objectivo primeiro de impressionar e catequizar os fiéis analfabetos. E assim acontecia, por exemplo, o movimento barroco na arte.

E voltamos ao cesto das cerejas. Humanismo, que se ligou inicialmente à literatura, acabando por posteriormente tomar os desígnios éticos – não necessariamente morais – que lhe conhecemos. E que esteve na origem da noção de indivíduo, ou das políticas iluministas que poriam cobro ao Antigo Regime, com a Revolução Francesa (1789). A França, de novo. O estabelecimento dos pilares políticos e sociais do Ocidente. Falível, talvez, já o referimos atrás.

Mas acabaria por acontecer a laicização do Estado, portanto, a separação dos domínios religioso e político. Com as suas fragilidades, falsas morais, e outras tantas questões. Mas aconteceu. O que não sucedeu com o Islão radical. E são muitos. Falamos linguagens diferentes. E provavelmente será sempre assim. Talvez sem resolução à vista. Mais bloqueio económico, mais atentado terrorista, mais massa humana a gritar contra o Ocidente e a queimar bandeiras. Miúdos a quem colocam uma arma na mão. Aproveitamento de direita radical, xenofobia. O costume.

E voltamos à pobreza. Mais do que uma pobreza de fome há uma desorientação e uma pobreza em sentido lato, que vai atravessando, a seu modo e a seu tempo, o mundo. A reflexão e, talvez, posteriormente a acção; ou uma e outra, ao mesmo tempo, possam e devam fazer a diferença. É importante lançar debates. E esta exposição propõe-se fazê-lo. O que é, naturalmente, um modo em bom tempo.

Isabel Nogueira

Exposição patente no Pavilhão 31 até 27 de Fevereiro, 2015

Horário: 2ª a 6ª feira (10h – 16h)

Visitas por marcação noutros dias e horários:
Emília Tavares: 915326706
Paulo Mendes: 936396964

Hospital Júlio de Matos – Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa
Avenida do Brasil, 53, Lisboa

+ info:

O tempo e o Modo

O TEMPO E O MODO, Para um Retrato da Pobreza em Portugal

Indicadores económicos recentes revelam que, em Portugal, pela primeira vez desde a década de 90 do século XX, o nível de pobreza aumentou. Segundo dados recentes avançados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), a taxa de pobreza é de 18,7% – afecta mais de dois milhões de pessoas.

Segundo o INE, um quarto (24,7%) da população está em risco de pobreza. Olhando para estes segmentos da população, há conclusões inultrapassáveis que ressaltam destes números: os menores de 18 anos, as famílias com filhos a seu cargo e os desempregados são os mais afectados. São grupos sociais frágeis que estão mais expostos, e sobre os quais a iminência das ondas de choque sociais são mais violentas.

A pobreza foi uma das condições sociais que mais foi combatida, em todos os quadrantes políticos dos regimes democráticos, num espírito de solidariedade social mínima visando erradicar a exclusão económica num estado de prosperidade. O denominador comum do discurso e acções políticas, teve um rosto público bem identificado: ‘Estado Social’, que uns defendem como sistema de erradicação das exclusões (económica, social e cultural), e outros rejeitam argumentando com a sua insustentabilidade económica.

O ultraliberalismo e o pós-capitalismo selvagens tornaram de novo a pobreza um assunto presente, em sociedades e países desenvolvidos, duma forma que se torna a cada dia demasiado evidente. De forma abrupta, a pobreza, e por arrastamento a exclusão social, não é um índice que já só interessa aos países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento, mas que grassa na Europa, no nosso quotidiano e em sociedades que julgávamos ao abrigo da mesma.

Esta é, sem dúvida, uma das mais perigosas ameaças à estabilidade social e política com que a Europa e o mundo se defrontam, já que a pobreza tem funcionado, ao longo da história, como um dos principais responsáveis por conjunturas de totalitarismo e de maior injustiça social.
No final dos anos setenta assistimos em Portugal à falência das utopias pós-revolucionárias e à integração europeia que prometeu um país económica e socialmente próximo dos estabilizados padrões europeus. Seguiu-se a desregulação dos apoios da comunidade europeia e a progressão da corrupção num regime de impunidade jurídica e política.

A crise do sistema financeiro internacional, que teve o seu início em 2008, acarretou consequências brutais para as economias europeias mais débeis, arrastando países como a Grécia, Irlanda, Itália, Espanha e Portugal para um retrocesso da qualidade de vida sem igual, uma perda inimaginável há alguns anos atrás. Abruptamente deu-se o regresso a padrões sociais de há vinte ou trinta anos. Os sistemas económicos liberais aproveitam para efectuar uma “purga” nas concessões ou conquistas, conforme o ponto de vista, ao movimento operário. O que levou décadas a materializar perdeu-se num ápice, tendo a crise como escudo protector.

Por isso mesmo, o pensamento cultural e artístico deve contribuir para uma reflexão e observação do estado da Pobreza, analisando a sua evolução histórica, de forma a permitir um entendimento esclarecido e crítico da mesma, que seja útil à sociedade e aos cidadãos.

Esse panorama quer estar fundamentado nas grandes áreas de estudo e pensamento sobre a Pobreza, mas quer também que seja de leitura acessível e clara a todos os cidadãos, constituindo matéria de reflexão pública, assim como um espaço que abra perspectivas de acção e combate à Pobreza, numa proposta clara de pensamento como intervenção.

Emília Tavares e Paulo Mendes, 2014 (autores do projecto)

Actividades relacionadas (seminário):

Política, Austeridade e Emancipação: a metrópole em Tempos de Crise

Dia 24.01.2015 – Auditório do Hospital Júlio de Matos – entrada gratuita

Com: Antonio Negri, António B. Guterres, Eduardo Ascensão, Emília Tavares, Inês Galvão, Judith Revel, Nuno Rodrigues, Nuno Serra, Otávio Raposo, Paulo Mendes e Unipop.

+ info:

Unipop

Isabel Nogueira (n. 1974) é historiadora de arte contemporânea, professora universitária e ensaísta. Livros mais recentes: ‘Artes plásticas e crítica em Portugal nos anos 70 e 80: vanguarda e pós-modernismo’ (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013); ‘ Théorie de l’art au XXe siècle: modernisme, avant-garde, néo-avant-garde, postmodernisme’ (Éditions L’Harmattan, 2013); ‘Modernidade avulso: escritos sobre arte” (Edições a Ronda da Noite, 2014); ‘Teoria da arte no século XX: modernismo, vanguarda, neovanguarda, pós-modernismo”, 2.ª edição (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014). É membro da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte).