Onde é a China?
> 06.07.2014
Museu do Oriente (Lisboa)
Comissários: José Drummond, Luís Alegre, Nuno Aníbal Figueiredo
Artistas: Alice Kok, Ana Pérez-Quiroga, António Júlio Duarte, Bianca Lei, Carlos Lobo, Chen Shaoxiong, Cui Xiuwen, Fortes Pakeong Sequeira, James Chu, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, José Drummond, José Maçãs de Carvalho, Liao Chi-Yu, Luís Alegre, Maria Condado, Miguel Palma, Paulo Mendes, Pedro Loureiro, Peng Yun, Rui Calçada Bastos, Song Dong, Teresa Carneiro, Tiago Baptista, Wang Qingsong, Xing Danwen, Yin Xiuzhen e Zhang Huan.
Onde é a China? é uma exposição que inaugurou em Pequim, no Beijing World Art Museum, a 16 de Maio, e em Lisboa, no Museu do Oriente, a 29 desse mês. Participam 27 artistas da China e de Portugal, sendo esta, segundo a organização, a maior exposição realizada, até ao momento, com estas características. Onde é a China? celebra 35 anos de relações diplomáticas entre estes dois países.
Esta mostra reflecte sobre a realidade cultural e sobre o sentido global das geografias, apontando que estes são valores que não são estáveis nem previsíveis. A natureza idiossincrática da China produz vocabulários artísticos variados. Estes modos de expressão sobrepõem de algum modo, em termos de temas e mundos imaginários, com a arte do ocidente. Há contextos mútuos e há ‘encontros imediatos’. É precisamente neste contexto que um grupo de artistas chineses e portugueses propõem uma reflexão que tem como resultado trabalhos em vídeo, pintura, fotografia, escultura e instalação.
A seguir, entrevista aos comissários da exposição por Celina Brás.
Citando Marcel Proust: “A verdadeira viagem de descoberta consiste não em achar novas paisagens mas em ver com novos olhos”. O pressuposto desta reflexão poderia ser uma das premissas desta exposição?
Luís Alegre: Esta citação de Proust pode servir de princípio orientador para encontramos a imagem daquilo a poderíamos denominar como geofilosofia.
Onde é a China? coloca num primeiro momento um problema obviamente terreno, a Terra e as suas moradas, o local na Terra, mas também a Terra como local de todos os humanos. Contudo a pertinência desta pergunta no momento e contexto actual deixa escapar, na sua aparente simplicidade, a ideia de que podemos procurar e encontrar a imagem de uma nova geofilosofia (mais ou menos radical), que por via das suas movimentações pretende evitar o falsamente concreto ou a generalização.
Os muros, as fronteiras, os limites e as geometrias variáveis do espaço e do tempo histórico, constituem algumas das inquietações inscritas nesta pergunta que é simultaneamente um título e uma proposta de trabalho para um conjunto de 27 artistas contemporâneos (Portugueses e Chineses).
Talvez seja percorrendo as fronteiras, ladeando os limites dos muros, procurando novos sentidos e rastos de velhos e actuais movimentos, que se alcance o reconhecimento de outras moradas possíveis.
A verdade é que não consta do programa desta exposição a ambição de iluminar a política por via da arte, pelo menos da arte enquanto tal, mas reunir um conjunto de imagens da arte que nos permita, de forma livre, perceber melhor aquilo a que chamamos real ou realidade. É justamente por isto que a geofilosofia a que aludimos no início desta resposta funciona como estratégia criativa do fazer-imagem e por isso é como uma força indutiva capaz de dotar os artistas de inventar espaços, reinscrever os existentes, viajar nas linhas e nos pontos que unem ou desligam, de forma por vezes invisível, as malhas da designada globalização contemporânea.
Sabemos que as actuais estratégias da arte contemporânea apontam, na maioria da vezes de forma intuitiva, para a pergunta que este título inscreve e acabam por revelar uma capacidade singular na possibilidade de mapear as espacialidades complexas associadas à globalização.
Assim, a pergunta “Onde é a China?” torna-se um dispositivo retórico revelador de uma contradição e uma tarefa muito difícil de responder, se não mesmo impossível.
Onde é a China? Será simultaneamente em qualquer lugar ou em lugar nenhum?
A verdade é que todos habitamos este espaço (o da Terra). Contudo e de forma aparentemente paradoxal parece ser cada vez mais difícil saber ver ou ser dotado de um olhar que “tudo vê”.
A globalização é um tema complexo, que se constrói a diferentes velocidades, mexe com diversas identidades culturais e políticas, é uma realidade mutante, de paradigmas incertos, entre muitas outras questões. Nesse sentido, que critérios e princípios fundamentais orientaram esta proposta curatorial?
Luís Alegre: A globalização é justamente um dos contextos determinantes desta proposta curatorial. Falamos obviamente da globalização que se configura em múltiplas direcções e dimensões (económica, política, tecnológica e cultural).
Mas, é também de salientar a dimensão da designada “glocalização” (neologismo resultante da fusão dos termos globalização e localização). Ou seja, o programa curatorial desta exposição não pode escamotear a dimensão local no contexto da produção de uma arte e de uma cultura global.
A proposta feita aos vários artistas Chineses e Portugueses que desencadeou uma reflexão através da apresentação de obras em vídeo, pintura, fotografia e instalação, tem na noção de “glocalização” ferramenta de análise capaz de dar conta das mudanças sociais que estão em curso no mundo — alterações nas relações na dimensão global e na dimensão local. Dizendo a mesma coisa de outra maneira, são as alterações da relação entre global e local que induzem ou possibilitam a existência de ligações directas entre o global e o local. Com efeito, a ligação directa é em tempo real e é assim uma ligação sem-distância. Isso significa que, diante da mudança que hoje se processa, o local adquire um novo estatuto que, para ser revelado, exige também que repensemos o conceito: “localização”. Da mesma forma que foi necessário utilizar um novo conceito de “globalização” para entender as mudanças que estão a ocorrer na dimensão global, torna-se também necessário gerar outros sentidos de “localização” para entender as mudanças na dimensão local.
As duas coisas constituem aspectos desafiadores de um mesmo processo e para compreender a cultura em tempos de globalização, a partir de uma visão crítica e criativa da realidade, é preciso que os artistas e a arte pensem de forma livre, para além das concepções instrumentais e funcionais que as concebem numa relação entre forma e conteúdo.
A arte é uma ferramenta importante para promover e facilitar o diálogo intercultural. Quais são as questões essenciais promovidas pelos artistas chineses e portugueses e como se relacionam?
José Drummond: Neste período contemporâneo a arte atinge os mais diversos espaços de intervenção e, ao contrario de outras épocas está mais próxima de reflectir o mundo à sua volta. Como ferramenta é sem dúvida um meio privilegiado para o diálogo intercultural.
Em relação às questões essenciais promovidas nesta exposição interessa examinar a natureza idiossincrática da China e de como produz diferentes vocabulários artísticos. Estas formas de expressão sobrepõe-se, em certa medida, em termos de assuntos e mundos imaginários com a arte do ocidente. Existem contextos mútuos e existem encontros imediatos. Cada artista, à sua própria maneira, chinês ou português, continua o legado do desconstrucionismo.
A obsessão de sonhar, o processamento da memória colectiva e pessoal, a perda do lugar e da crítica das condições sociais e políticas são todos parte de uma sociedade global contemporânea, mas para os artistas chineses estes princípios são especificamente caracterizados por uma disposição nómada. Não só a maioria deles estudou e viveu no ocidente, que agora que retornaram, se torna mais óbvio, que o seu trabalho está intimamente relacionado com questões de peregrinação, deslocamento, rotas e território, inspirados por práticas ocidentais, ao mesmo tempo que se relacionam com espaços híbridos na forma de pensar chinesa.
Do mesmo modo a visão sobre a China protagonizada pelos artistas portugueses avança com modos de mapeamento, procura, captação e circulação de imagens, ou acções, capazes de interagir numa postura global.
O mundo global mapeia uma circulação de ideias e, especialmente, de formas de trabalho, códigos, processos e encarnações materiais que se podem fazer. Estamos perante uma combinação de factores que rapidamente invade o espaço urbano e cultural.
A China é um país que vive transformações profundas, de que forma esta exposição reflecte o seu actual contexto social e político e a sua influência no cenário global?
José Drummond: A arte na China de hoje permite a percepção de um espaço amplificado, cheio de obras de arte multidisciplinares, gestos declarativos de protesto e rituais simbólicos que falam sobre o custo humano da modernização. Mais perto da realidade que o ilusório panfleto do futuro são obras que funcionam como escudos protetores e dispositivos icónicos para a mente e corpo humano dentro de uma paisagem apocalíptica e uma perspectiva decepcionante de futuro. Trabalhos que se apercebem do presente envenenado que encaramos com a globalização e o progresso.
É nesse sentido que a urgência deste conceito seja reformulado. Porque a arte na China ou da China já não é exclusiva de lugar.
A exposição reflecte sobre vários contextos sociais e políticos. Kosuth disse que toda a arte é política e nesse sentido são várias as peças na exposição que sem serem óbvias tocam esse campo. As “ficções urbanas” de Xing Danwen são um paradigma do desenvolvimento das cidades onde as pessoas estão cada vez mais deslocadas de si próprias. As pessoas vivem em cubos separados por paredes finas. No entanto esta proximidade física, em vez de criar uma maior intimidade entre as pessoas cria maior distância psicológica e solidão. Nas mãos que se entrelaçam em posições de primeiros socorros de Rui Calçada Bastos sugerem-se tensões nos diálogos possíveis entre culturas e pessoas. A presença bucólica de uma fantasia mitológica ocidental no “piquenique” de Liao Chi-Yu estabelece, a partir de Taiwan, uma visão ímpar sobre o que pode ser social sem deixar de ser poético. A performance de Zhang Huan, que é uma peça histórica, olha sobre os trabalhadores chegados a Pequim na tentativa de melhor sorte e remete-os a uma acção de carácter imensamente político, segundo o ponto de vista chinês, usando a água como veículo de expressão. A ‘lavagem’ destes trabalhadores num lago parece um acto banal mas na realidade o que está aqui em jogo é a noção de que a água enquanto fonte da vida está, em Pequim, suja e que as possibilidades destes trabalhadores é por isso limitada. Num acto final é também sugerido que a criança deve ser elevada para ficar protegida dessa sujidade.
A maior parte dos artistas, presentes nesta mostra, viveu ou vive fora do seu país de origem. A arte será o seu ponto de encontro? Seria desejável a arte como epicentro da sociedade global?
Nuno Aníbal Figueiredo: Quando começámos a definir os artistas participantes pensámos exclusivamente em nacionalidades, Portuguesa e Chinesa. Claro que havia, na maioria dos artistas portugueses, uma experiência directa da Ásia, sobretudo de tempos de residência em Macau. Isso possibilitava, considerávamos nós, um olhar “ocidental” menos preso a uma leitura exótica e também, de algum modo, um registo menos complacente com a realidade social e política daquele país.
Quanto aos artistas chineses presentes na exposição, é natural que o seu estatuto mundial, ainda mais do que no caso dos portugueses, dê essa dimensão internacional.
O campo da arte contemporânea, felizmente, é bastante menos fechado que o da geopolítica. Os artistas circulam por todo o mundo quer por interesse particular, quer pelas caraterísticas próprias da sua actividade. Os principais museus, galerias e feiras são “Sociedades de Nações” à escala. Até porque o público, que é a sua audiência, é suficientemente heterogéneo. Há um crescente interesse internacional por este turismo de elites culturais. Vejam-se os exemplos dos novos grandes museus que vão abrir nos próximos anos em Hong Kong e no Dubai. São reflexo de novas capitalidades no mundo das artes, mas também de uma realidade cada vez mais transnacional e verdadeiramente global.
Há assimetrias, como é natural, sobretudo entre regiões pobres e ricas. Mas julgamos – ou pelo menos temos essa esperança – que no território das artes as desigualdades e desequilíbrios são menos acentuados do que noutras áreas. E por isso, sim, acreditamos que a arte pode e deve ser esse ponto onde o mundo se revê mais diverso mas também mais próximo.
A arte, ao lidar com a natureza da realidade social, desconstruindo as suas próprias contradições, questionando-as e incitando à reflexão, convoca a experiência colectiva. Isso pode ser considerado um acto político. Que ideias são partilhadas nesta exposição sobre estas possibilidades?
Nuno Aníbal Figueiredo: Trata-se de uma questão central para a arte, mesmo ou sobretudo na contemporaneidade. E essa não é apenas uma questão premente na China ou noutro qualquer país de regime ditatorial. Coloca-se ainda com maior dificuldade – senão urgência – em países onde os problemas sociais e políticos são, digamos, menos visíveis. Como os “nossos”. Como fazer arte que brote da vida colectiva quando os factores de pertença se vêem cada vez mais esbatidos? Como fazer arte que intervenha, quando a arte parece cada vez mais adquirir um papel lateral na vida das sociedades actuais? É tão difícil hoje, muito mais do que antes, encontrar movimentos colectivos na arte, tal como o será nas outras áreas. Agora isso não significa que os artistas não reflitam a realidade colectiva de onde partem ou onde se inspiram.
Julgamos que isso sucede nesta exposição, a dois níveis, se quisermos simplificar: um tipo de obras não faz assumidamente uma afirmação política, outro sim. Paradoxalmente, as do primeiro “tipo” não deixam de ser mais incómodas, porque são as mais próximas de uma leitura acessível. Nas outras, apesar de serem obras de forte cunho político, a sua leitura é mais indirecta, o que implica um menor impacto social. Não é por acaso que as obras de Song Dong (de que é exemplo este seu “muro doce”) ou de Wang Qingsong (se não bastasse a imagem da estátua da liberdade em ruínas, surge ainda em Goddess a inscrição da data do massacre de Tiananmen em numeração romana) escapam à censura. Longe de neutral, o sentido das suas obras está bem ao alcance desse tipo de escrutínio. No entanto, o risco da leitura por parte de uns quantos é bem menor do que o impacto generalizado de uma eventual recusa. Temos que concordar que para a sensibilidade colectiva elas são bem mais inócuas do que, por exemplo, a obra do Miguel Palma patente nesta exposição. De múltiplas camadas, em Yami Chop Suey o artista que come comida chinesa sobre um mapa do mundo chinês não deixa de ser também isso mesmo.
Julgamos que dessa constatação resulta outra evidência desta exposição: as propostas dos artistas portugueses estiveram mais viradas para a imagem de um mundo globalizado “made in China”, ao passo que as dos artistas chineses estão muito mais centrados na ideia de globalização como sinal de abertura de mundos, o que não deixa de ser igualmente sintomático.
A saber:
A inauguração, em Pequim, no passado dia 16 de Maio, contou com a presença de Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República de Portugal. Momentos antes da inauguração, duas obras de artistas portugueses: Yami Chop Suey de Miguel Palma e o filme Alvorada Vermelha de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata foram alvo de censura, por parte das autoridades chinesas, não podendo ser exibidas. Ler a notícia aqui. Em Lisboa podem ser vistas, na exposição patente no Museu do Oriente, até ao próximo dia 6 de Julho.
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