Joao Felino: Flags of the World

> 31.08.2014

Piso 1 (Sala Pereira Coutinho)

MUDE – Museu do Design e da Moda (Lisboa)

O trabalho de Joao Felino inscreve-se numa área híbrida, numa zona contaminada onde habitam diferentes procuras. A matéria-prima, o suporte, o processo e o seu resultado diferem em cada investigação e revelam a inquietação da procura. Nos pontos de paragem deste trajecto encontramos diferentes “produtos”: objecto-comum, objecto-fotografia, objecto-escultura, objecto-pintura, objecto-instalação, instalação-objecto, indiferentes à problemática estéril da sua classificação.

Objecto-Símbolo

O presente trabalho opera a partir de um Objecto-Símbolo inscrito num imaginário colectivo amplamente difundido e a-regional. A Bandeira é, no seu uso comum, portadora de uma carga semântica inalienável e, em simultâneo, um objecto de uma certa neutralidade. Ou seja, se por um lado cada Bandeira transporta ressonâncias infinitas, suscitando diferentes reacções, por outro este objecto repete-se, universal, banalizando-se como um conjunto de cores e composições que se neutralizam pelo desgaste. Um objecto que padece daquilo que, num diferente contexto, Didi-Huberman considerou como uma forma de “desatenção” relacionado com uma “hipertrofia” da Imagem.

Em momentos históricos e geográficos diferentes uma Bandeira é um objecto cuja adesão, indiferença, repúdio ou distância é patente de forma imediata para cada espectador. A escolha deste Objecto-Símbolo, reconhecível e comum, é desde logo uma afirmação de que ao espectador será solicitada uma tomada de posição que reponha, a partir de um imaginário partilhado, um significado.

Objecto-Visível, Objecto-Visto

A escolha da Bandeira é portanto a escolha de um Objecto-Símbolo que já conhecemos. A referência a Jasper Johns e ao seu discurso é inevitável pela forma como apresenta estes objectos como “things the mind already knows”. Uma “coisa” que, reiteradamente, nos invade como imagem não problemática e de significado resolvido. Uma composição já definida, um conjunto de cores já consolidadas na qual reconhecemos a ligação imediata a uma nação.

Neste contexto e de forma exemplar, o excedente que a nossa atenção transporta a cada momento revela-se. O acto de Ver revela-se um acto da compreensão e não um processo fisiológico puro. A identificação de cada Bandeira dá-se apesar da indigência do que temos perante o nosso olhar. O desenho, o padrão geométrico e cromático, reclamam uma nacionalidade e a nossa compreensão reage de imediato, reconhecendo-a. O Visto –  a Bandeira de uma determinada nação – não coincide com o Visível – um conjunto de panos brancos, dispostos de determinada forma.

Objecto-Vestígio

Tornando patente a questão do “Acto de Ver” como um problema, o Objecto-Símbolo que se escolheu não nos é oferecido na íntegra mas antes apresentado como se de uma outra coisa se tratasse. À Bandeira falta o dado que permite o seu reconhecimento imediato: a composição neutralizada e o conjunto de cores que a distingue.

É necessário neste caso convocar o que já conhecemos e, a partir do Vestígio que nos é apresentado, recompor a identidade do que vemos.

Operamos como numa arqueologia da memória mas dispensamos a morosidade do processo, vemos cor ao ver branco, vemos linhas ao ver costuras, vemos planos cromáticos ao ver tecido sobreposto.

Objecto-Comum

Para este trabalho Joao Felino procurou inicialmente “descolorir” Bandeiras comuns, existentes e impressas, operar por subtracção e através de descolorantes, neutralizá-las. O tecido resistiu a este desgaste acelerado e obrigou a simular essa mesma descoloração de um outro modo: reconstruindo o objecto. De forma irónica, para chegar a uma redução – de um objecto comum ao qual foram retiradas as propriedades cromáticas – foi necessário adicionar invertendo o sentido do pensamento inicial. Simular a perda do todo somando partes. Neste novo processo foi necessário concentrar a atenção nas exigências do material: na forma como o tecido reage ao corte, na forma como a linha de costura se sobrepõe ao pano. Esta inversão obrigou a uma aproximação, a uma reconstrução morosa do objecto que inicialmente se procurou mutilar.

Objecto-Instalação

A produção do objecto resgata-o da esfera do Objecto-Comum e torna-o um Artefacto. A esta operação segue-se um outro nível de intervenção: o refazer do processo num conjunto mais alargado e pro fim a sua Instalação num espaço específico. Repete-se o processo de construção uma e outra vez, elege-se um e outro país, e procura-se um princípio relacional onde os objectos se decifram como um todo.

Para Instalar pela primeira vez este conjunto foi escolhido o Museu do Design e da Moda, tornando cada vez mais ostensiva a contaminação entre o universo da Arte e do Design que a intervenção desde logo reclamara. Para amplificar a ambivalência do significado, foi escolhido um espaço não neutro, no interior do MUDE, uma Sala actualmente encerrada e tangencial ao percurso expositivo. Um espaço caracterizado por uma certa formalidade que desde logo intensifica a definição oficial e comum de Objecto-Bandeira. Uma sala solene com uma carga decorativa inalienável, contrariando o White Cube onde nos habituámos a reconhecer uma obra de arte, onde facilmente imaginamos a colocação de uma Bandeira na sua forma comum.

Esta condição vem alargar a ambiguidade da intervenção: Se por um lado é citado um Objecto-Comum – a Bandeira –  que se reclama como Objecto-Artístico, por outro é feito o movimento inverso:  instala-se o seu conjunto num espaço que reaproxima estas enigmáticas peças brancas do seu significado oficial e as distancia da sua possibilidade enquanto obras de arte.

A instalação das Bandeiras lado a lado, neste espaço, reencontra a área híbrida onde o trabalho de Joao Felino se instala.

A sala desabitada e ocupada pelas ressonâncias destes Objectos silenciosos e eloquentes, vulgares e enigmáticos, olhando-nos inexpressivos como panos brancos, cindidos, recompostos, ou expressivos e gritantes como Bandeiras.

Sofia Pinto Basto

Maio, 2014

+ info:

MUDE – Museu do Design e da Moda (Lisboa)

(C) imagens: Cortesia de Joao Felino.