Jorge Molder: Dois deles

> 14 de Junho, 2014

Appleton Square (Lisboa)

Curadoria: Nuno Crespo

Toda a Fotografia

Nuno Crespo

A arte, os objectos artísticos, como qualquer objecto que na sua singularidade nos escapa, não são  apropriáveis, são exemplos de resistência, pois nascem expondo o seu retirar-se.*

A cada nova imagem de Jorge Molder renova-se a convicção de a sua obra ser um universo em que a multiplicação e a fragmentação parecem ser as suas modalidades principais. Cada imagem é um elemento que se acrescenta a uma espécie de imagem única e, por isso, entre as diferentes séries de imagens deste artista surgem pontos de contacto e de desenvolvimento, diferentes elementos com uma espécie de vocação de totalidade.

Não se trata de estar sempre a fazer a mesma coisa, a repetir o mesmo gesto, a cismar numa mesma questão, mas tentar, de cada vez, avançar na conquista da fotografia, da representação, do rosto. O artista sabe da impossibilidade da imagem total, dessa imagem que conteria todo o passado, todo o presente e todo o futuro, ou seja, toda a fotografia. Falar neste todo não significa anular as diferentes ideias, gestos, fisionomias que Jorge Molder tem desenvolvido, mas cada um desses elementos diferentes surgem enquanto fragmentos de uma totalidade ou, se se preferir, de uma mesma fotografia.

As ideias de limite da representação, da identidade, da imagem são-lhe fundamentais enquanto lugares a partir dos quais desenvolve o seu trabalho. Dedicar-se a esta zona criativa, implica a construção de uma obra experimental, isto é, nas diferentes obras de Molder nunca nada está estabelecido, fixado, regulado, e cada imagem exige protocolos de experiências muito distintas. E um dos aspectos mais surpreendentes é que mesmo que o artista tenha dedicado uma parte significativa da sua obra a fotografar um mesmo objecto — a si mesmo enquanto objecto da fotografia e não enquanto identidade a ser representada (não são auto-retratos) — de cada vez parece colocar-nos face à primeira fotografia que realiza e, por isso, cada imagem é uma espécie de figura inaugural e de espanto. Aspectos estes que não só compõem a singularidade destas obras, mas também as transformam numa importante crítica aos processos artísticos de representação do sujeito e da expressão da identidade.

Haveria muito a dizer sobre os aspectos performáticos, cinematográficos, literários e filosóficos daobra de Jorge Molder, mas é essencial perceber-se que cada uma das suas imagens é, sobretudo, uma forma de resistência. E resiste a leituras rápidas, iconográficas ou narrativas, isto é, resiste a qualquer tipo de comunicação e, seguindo Silvina Rodrigues Lopes, de apropriação, por isso não é ajustado atribuir às suas séries outro conteúdo senão a tensão que o artista activa entre o figurativo e o sem figura, sem imagem, sem nome. E esta tensão é o fio que une todos os elementos deste todo fotográfico e que se pode reconhecer nas múltiplas personagens que o artista desenvolve e encena para a sua câmara. Quer encarne um agente secreto, um mágico, um homem invisível, um palhaço ou um bailarino, está sempre presente aquela energia figurativa, não porque o artista se dedique à representação daquelas figuras, mas precisamente porque se concentra nas diferentes formas de resistência dessas mesmas figuras. E esta resistência não é relativa unicamente aos limites da visibilidade (detectar o limiar a partir do qual o visível se transforma em invisibilidade, a presença em ausência), mas igualmente a qualquer apropriação política, cultural ou civilizacional. E esta concentração resulta na convocação e exploração fotográfica das lonjuras, dos disfarces, dos desfoques, das imagens não técnicas.

Ver assim a obra de Jorge Molder implica que os sentidos e interpretações que se lhe atribuem são sempre provisórios. Cada novo trabalho afecta a compreensão do todo da sua obra, ou seja, o passado, aqui enquanto obra plástica, não tem uma forma definitiva mas a cada nova obra é re-escrito e re-visto. Trata-se de uma relação muito particular com o tempo em que novo e velho, antes e depois, não têm expressão cronológica, mas são diferentes manifestações da actualidade das imagens. Pode pensar-se numa espécie de livro que nunca está totalmente escrito e a que, de tempos a tempos, vão sendo acrescentadas novas palavras e novas histórias. E o que se acrescenta não é um novo capítulo, parte ou actualização, mas um elemento integrante e orgânico do todo do livro.

Nuno Crespo

* Silvina Rodrigues Lopes em entrevista a Emilia Pinto de Almeida, Revista do Instituto de História da Arte, nº10, 2012, p.18

Jorge Molder nasceu em Lisboa, em 1947. Cidade onde vive e trabalha. Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1972). Em 1977 realiza a sua primeira exposição individual. Recebeu o Prémio AICA/Portugal (2006-07) e o Grande Prémio Fundação EDP/ Arte (2010). Ao longo da sua carreira participou em inúmeras exposições individuais e colectivas nas mais prestigiadas galerias, centros de arte e museus, a nível nacional e internacional. Foi artista convidado da 22ª Bienal de São Paulo (1994) e representou Portugal na 48ª Bienal de Veneza (1999).  Jorge Molder é o primeiro artista português representado na Unesco Art Collection.

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