Joana Linda: Em cada lar perfeito, um coração desfeito
Amores imperfeitos para corações desfeitos
por Carlota Gonçalves
Joana Linda começa por ser fotógrafa, mas é também outras coisas, uma artista com formação e um grande interesse pela música, tem realizado videoclips, é designer de cartazes de filmes, e mantém com o cinema uma relação forte onde se vai testando, sustentando-o talvez como cenário de um primeiro gosto (talvez amor), que alimenta com algumas coisas que vai fazendo, a notar, o seu filme-pássaro ‘’Karunã’’, 2013, e o recente “Em cada lar perfeito, um coração desfeito”, 2014.
As possibilidades narrativas das suas autorrepresentações na fotografia, (escolha inaugural no seu trabalho), ou os espaços que documentam lugares e também pessoas retratadas com a sua biografia pessoal, (‘’Desterro’’, por exemplo), reaumentam-se nas histórias que desencadeiam, testemunhando também uma carga estética e uma veia intimista, que se vão fundindo em estreitas fusões.
“Em cada lar perfeito, um coração desfeito”, a sua curta metragem que estreou no festival IndieLisboa, desenvolve-se em 7 quadros com 7 fases do amor, revistas num ensaio sobre o desamor. O título já é sugestivo e enuncia logo a imperfeição ou a fissura que a frase acumula, através da troca, também irónica, dos contrários em rima: o lar perfeito, o coração desfeito.
Joana Linda foi buscar inspiração a Stendhal e ao seu livro mais ou menos ensaísta “De L’amour’’, publicado em 1822, inovador para a época que mistura memórias, confidências, aforismos e documentos de certos códigos de amor cortês. Um ensaio ideológico, ou uma análise sociológica e psicológica do amor através de culturas várias, resultou de um desgosto amoroso do escritor e desenvolveu-se como ideia especulativa do amor e uma forma de sublimação. Joana Linda serve-se da obra de Stendhal para recriar um universo de imagens e palavras – com argumento seu – que usa a carta, o modo epistolar, como mote para a troca amorosa, pois interessa neste género literário revelar paixões ou apelos pessoais. A carta serve então aqui a narração maior dada pelas vozes em off das personagens, despoletando e revelando uma trama amorosa. Estes 7 quadros parecem autonomizar-se e vão falando por si, mais ou menos desligados uns dos outros, eventualmente suportados por fios invisíveis que os unem.
O filme abre a negro em pré genérico onde uma voz feminina com uma tonalidade doce, nos diz: ‘’Para onde a tristeza vai eu sigo, não é voluntário é como um chamamento (…)”. Esta frase repete-se e faz circular uma ideia de mistério, de uma suavidade triste. É apenas um toque, que nos faz ouvir no escuro o tom que a narrativa parece veicular logo de entrada. Para já é assim.
O 1º quadro afixa-se, ‘’Admiração’’, ao som de uma caixa de música manequins femininos combinam-se com uma voz masculina a ler a sua declaração de amor, seguida da resposta da destinatária, agora, com manequins masculinos. Neste caso, assim como no quadro da ‘’Sedução”, o texto foi retirado da obra de um autor desconhecido ‘’Como se escreve uma declaração de amor’’. Este é o momento da disponibilidade amorosa, da confissão declarada às profundidades do sentimento: uma ‘’língua de palavras e uma língua de imagens’’ (Rancière) que se adequam e ajustam ao mesmo fim: a 1º gramática amorosa.
‘’Desejo’’, afixa-se como 2º segmento, no qual o cenário exterior de uma floresta faz movimentar uma personagem masculina que vem do fundo do plano. Joana Linda brinca com a ideia de mostrar o filme, e ao contrário da distanciação faz-nos ouvir um elemento próprio do ritual da engrenagem do cinema por dentro: ‘’acção’’, ouvimos a realizadora dizer, e o cinema exibe-se então no seu fulgor de filme de época fantasista. O jogo aqui é a revisitação do conto de fadas, ‘’O príncipe sapo’’, que se conta com uma voz peculiar do género e intertítulos. Mas é a partir da consumação do desejo que o conto se começa a transformar, a contaminar a acção e a corromper-se (a maquilhagem do príncipe e da princesa exibe um risco vermelho sangue, a enquadrar os olhos, e a montagem sobressalta-se), as misturas de tempos confundem-se, surge o indesejo, o enjoo… e ‘’corta’’.
Prosseguimos para o segmento 3 ‘’Esperança’’, que espelha o pleonasmo do sentimento que se veste de branco. Ela espera, de vestido branco de rendas, enquadrada por repuxos que jorram e música que se romantiza numa imagem a preto e branco com a heroína romântico-trágica (a certa altura os repuxos de fundo são substituídos por negro).
Entramos no 4º quadro a “Sedução”, que se figura num pavão que se exibe ao passo de uma música que lhe encaixa como uma luva. A função da sedução parece rimar com o movimento que se coordena com a dança da ave emplumada; as palavras do enamorado inflamam-se; ‘’o fogo sagrado de um primeiro amor (…)”; as da enamorada reinventam-se “ensinas-me a dizer corto-te em pedaços numa língua estrangeira? (…)”; as palavras juntam-se a uma imagem de deleite junto a uma fonte com uma estátua de uma mulher nua e a água a correr.
O plano volta a negro e o discurso perde o tom classicista e trivializa-se – ‘’Os dias em que acordas a desejar que o teu cabelo fosse liso em vez de encaracolado (…) ”-, e vai crescendo em sentidos mais metafóricos: ‘’(…) que as memórias não devorassem o pouco que resta do delicado, entrançado de veias, nervos e músculos. A cama não te engole mas quase”.
Joana Linda vai cruzando registos e estilos com grande liberdade formal, percorrendo um trajecto narrativo não linear, dado pela fragmentação que acompanha o ponto de partida do processo conceptual da divisão por quadros.
O 5º quadro é pois “A desilusão”, que se associa à fragmentação de um corpo de mulher deitada, abandonada à letargia (da desilusão), no escuro, povoado por sombras, vultos e sons diegéticos e o mundo lá fora. Junta-se por fim uma canção que diz um pouco da dor e da memória do desamor: “(…) mas por vezes em sonhos ainda durmo ao teu lado”.
Esta passagem vai aliar-se ao 6º quadro “Aceitação”, sem marcar a ruptura a não ser pela imagem que se sucede da mulher de costas frente ao mar. Um diálogo entre os enamorados (desenamorados) intercepta-se com a canção ecoando outra música: a do desamor. E vem o mar como cenário insaciável de movimento e como momento de ligação e passagem para o último e 7º quadro “Fim”.
Inesperado fim que se coloriza em estilo retro, sci-fi, a lembrar plasticamente ‘’2046’’ de Wong Kar Wai, mas liberto da ideia de viagem em direcção ao lugar onde a memória se conserva. Neste lugar o tempo prolonga-se mas cada momento é vivido como se fosse o primeiro ou o último. A protagonista no seu colete salva vidas olha-nos e a voz em off (a sua), diz o desfecho desta história que não quer ser trágica e se mascara de cor e ligeireza para dar a volta e prosseguir caminho – a actriz (não a protagonista, ou então as duas), balbucia: já chega.
‘’Em cada lar perfeito, um coração desfeito’’, aproxima-se da fotografia, (os 7 quadros remetem-nos um pouco para ela), da performance, contem também alguma teatralidade, e o texto coloquial fica por vezes literário. Parece fazer sentido o que Rancière diz: ‘’Literariedade, teatralidade e cinematografia surgem assim não como propriedades de artes específicas mas como figuras estéticas, relações entre a potência das palavras e a do visível, entre os encadeamentos das histórias e os movimentos dos corpos que atravessam as fronteiras atribuídas às artes’’. Aqui está esta peça, (que se pode ver nestes cruzamentos artísticos), um ensaio cinematográfico, partido em 7 fases, fantasioso, ligeiro e humorístico, e muito musical de palavras, imagens e de música.
Carlota Gonçalves
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notas:
Rancière, Jacques, 2012, Os intervalos do cinema, Trad. Luis Lima, edições Orfeu Negro, Lisboa