Artista do mês: Pedro Sousa Vieira

Pedro Sousa Vieira nasceu no Porto em 1963. Vive e trabalha em Braga. O artista desenvolve o seu trabalho através de vários meios: desenho, pintura, instalação e fotografia, entre outros. Realizou várias exposições individuais e participou em inúmeras exposições colectivas. Os seus projectos mais recentes incluem a actual exposição individual ‘A Gaze from the back’ na galeria Belo-Galsterer, em Lisboa, e Preto no Branco, em 2012, no Espaço Chiado 8, com curadoria de Bruno Marchand. Apresentou também: No dia anterior, em 2013, na Galeria Nuno Centeno e uma exposição no Centro Cultural Vila Flor, na cidade de Guimarães, em 2011, com curadoria de Bruno Marchand.

A obra do artista encontra-se representada em algumas das colecções portuguesas mais importantes: Ar.Co, Lisboa; Caixa Geral de Depósitos, Lisboa/Porto; CAM / Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa; Fundação de Serralves, Porto; FLAD – Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Lisboa.

Entrevista por Celina Brás

O Pedro utiliza vários meios: desenho, pintura, colagem, fotografia, escultura e vídeo. De que forma esta característica define a sua prática artística? Pode ser considerado um instrumento de constante procura e investigação?

Os meios, ou disciplinas, como se dizia antigamente, quando acumulados, funcionam como desafios à experiência que prometem, e às vezes possibilitam, satisfazer uma curiosidade muito intensa. Tudo começa numa pequena deriva do coração e se estivermos atentos e sensíveis à nossa vida emocional mais pura a intuição dir-nos-á se o desafio vale a pena.

Mas é verdade que este processo, saltar de um meio para outro, tem uma configuração própria, evolui em zigue-zague, segue um movimento errático: por isso, pode acontecer, e acontece frequentemente, tocarmos as matérias e os materiais muito superficialmente, aprendermos as técnicas muito superficialmente. A certa altura, se nos deixarmos cativar pelo orgulho e pela vaidade, podemos julgar que as coisas não estão a correr bem, porque pensamos que têm que correr bem a partir dos resultados, porque pensamos as imagens e os objetos a partir de critérios e de categorias, como fazem os profissionais e os especialistas. A mim, que sempre fui um amador, aconteceu-me isto várias vezes.

Agora, que tenho cinquenta anos, o meu coração começa a dizer-me: apesar de tudo, fizeste bem.

Apesar de tudo, porque não podemos deixar de reconhecer o tempo que herdamos, e o tempo que herdamos tem sido demasiado interessante, demasiado atraente. Achei-me no maior parque de diversões da história da humanidade e quis provar de tudo: representei a seriedade e continuei; reconheci a frivolidade e continuei. Porquê? Porque, mesmo nos momentos mais difíceis, a certeza de uma voz interior me disse: continua; dilui-te na enxurrada; se quiseres reencontrar-te puro de coração esta é a tua via. Agora, quando olho para trás, já consigo ver parte da nuvem que compõe esta viagem e aventura: é como se tivesse atravessado muitos países e muitas cidades de que tenha esquecido os nomes; lembro-me de olhares, tonalidades, cheiros, um corpo em movimento, um gesto; e é tudo. Bendito zigue-zague.

E Fiz bem, porque, na verdade, o que importa não são as imagens e os objetos como estratificações de critérios e categorias, mas as imagens e os objetos como sinais de uma viagem e de uma aventura. As imagens e os objetos são como um espelho que potencia duas subjetividades sobrepostas: a alma do artista, como uma vida bem sucedida no perdão e no amor, e a alma do espetador, como um olhar pleno de gratidão e alegria.

Que critérios subjacentes, ao processo criativo, determinam a escolha de um meio (ou mais) para determinada acção?

Aquilo a que chamamos o acaso das circunstâncias, como aconteceu quando experimentei as máquinas fofográficas digitais pela primeira vez. A máquina digital permite ver a imagem que se quer captar a uma certa distância, no visor lcd, quase como se veem as imagens reproduzidas num livro, e deixa apagar –  imediatamente – aquelas que se captaram. O digital permitiu que aparecesse uma nova subjetividade fotográfica na aventura da fotografia, uma subjetividade menos heróica.

Se pensarmos a pintura como uma atividade e um método de constituição do olhar podemos definir os pintores num arco que vai do contemplativo ao ativo. O ativo chega à forma através da cor, através da vibração rítmica da cor; o contemplativo é sobretudo um desenhador, que apanha a forma de uma vez só, através de um tonalismo atmosférico. Eu pertenço a este segundo grupo. Diz-se que há poucas mulheres pintoras, mas não é verdade; na realidade há muito poucas mulheres que não sejam pintoras; as mulheres são pintoras contemplativas, não porque sejam dotadas de uma maior predisposição para o desenho, mas porque apreciam com entusiasmo a beleza da imagem, porque têm a intuição de que a imagem coincide com o corpo a que pertence.  Esta intuição, que é muito antiga, está agora a tornar-se mais conhecida. É uma grande revolução que está a acontecer.

Porque é que fiz fotografia? Porque queria fazer pintura; queria fazer pintura sem o trabalho do conteúdo.

Sobre o seu método de trabalho, dedica-se a vários projectos em simultâneo ou concentra-se num de cada vez?

Gosto de trabalhar um projeto de cada vez.

Sobre a importância da sua experiência como professor. Que tipo de influência exerce no contexto do seu percurso artístico?

Fui professor durante vinte e três anos. Tentei criar entusiasmo pelo desenho e pela pintura em crianças e noutros professores. Acompanha-me esta visão: um tapete muito fino e intrincado de mãos e de olhares, de traços e de cores que atravessa horizontalmente a memória dos lugares que percorro como um pássaro cego. O desastre está sempre eminente. Mas um desenho vale mil guerras; uma pintura vale mil guerras. Existe uma pedagogia do olhar? Dois pássaros que se acompanham nas circunvoluções de um voo, como os olhos estrábicos do Cristo menino de Rafael. Uma canção do visível, para seguir os termos de Rudolf Steiner.

A estratégia, continuamente utilizada por Pedro Sousa Vieira, da citação e da transformação da imagem, da sua recriação a partir do lastro que lhe sobrevive, é atualmente uma prática artística incontornável de descodificação do mundo e do nosso tempo. (…) (1) 

Gostava que falasse um pouco sobre este aspecto da “transformação e recriação da imagem” na sua obra.

As imagens mais fortes são as que recordamos quando narramos os nossos sonhos; e as mais atenuadas as que evocamos através do negócio instrumental das palavras.

O negócio instrumental das palavras é muito cansativo, quando se quer evocar uma imagem,  porque pressupõe que a forma se destaque da massa, adquira uma realidade geral e simbólica; o que é bom se formos projetar uma ponte, mas péssimo se abrimos o nosso amor à fluidez astral. Os poetas são seres angélicos nascidos na Terra porque aprenderam a pedir as palavras certas ao campo magnético do coração. Os pintores também devem aprender a pedir as cores certas, sobretudo se forem pintores tonalistas. É impossível pedir o traço certo porque o traço certo vem da esfera da intenção. Os artistas modernos tudo fizeram para atrair e repelir o traço do âmbito do seu trabalho, porque estavam convencidos de que tudo se passava na esfera da ação. Confundiam decisão com intenção. Encurtar a distância entre decisão e ação foi quase tudo o que desejaram: decidir e agir. Mas agir sem intenção é agir sem resposta, como um bloco de granito preto onde tivéssemos feito a incisão de um esboço de sorriso e que depois políssemos e puséssemos a vagar para sempre no espaço sideral. Pedir a palavra certa, pedir a cor certa, ser digno e aceitar o traço certo é perguntar em que mundo se quer viver.

Quais são as suas referências artísticas?

Em tudo o que fiz as referências tiveram sempre um período de duração muito curto; é assim que se organiza a minha memória; terminado um ciclo começo a esquecer a importância das referências, para que é que serviam; deixo de as amar; até que desaparece a maior parte dos nomes; por isso, não consigo falar de referências. Mas posso falar de uma grande influência, não de uma influência direta, mas do que tem funcionado como um fundo permanente de influência: o cinema. Às vezes imagino que poderia ter passado a vida a ver filmes, um a seguir ao outro, sem me aborrecer. As imagens do cinema têm um poder direto e muito forte na nossa vida emocional; conseguiram mesmo converter uma parte da alma de alguns dos piores tiranos. Foi o cinema, e não a fotografia, cuja aventura durou pouco, que apareceu aos trabalhadores e amadores da imagem vindos do passado como uma hecatombe do visível. Apareceu sem a almofada intelectual nem sensual da pintura, que era uma imagem do belo. O cinema é um fantasma de uma beleza crua, capaz de expressar tudo sem precisar de perseguir um conteúdo; não admite comparações, é um duplo fugídio. O cinema é uma arte feminina. Eu já entrei tarde, entrei quase no fim, mas ainda hoje me espanta que os homens tenham chegado – historicamente – a inventar o cinema. Porquê? Porque o cinema instabiliza radicalmente um ciclo que parecia querer fechar-se com a fotografia; e fá-lo, pelo menos em teoria, de uma forma muito brusca. Hoje, quando ainda não nos refizemos completamente desta torsão súbita na economia das imagens, já uma nova aventura se abre: voltamos a descobrir o interior. Não o interior compungido da solidão romântica, nem o recôndito dogmático da paixão religiosa, mas um interior sem profundidade. Porquê pintar e desenhar e  fotografar e filmar? No meu caso têm sido modos de responder à influência aberta pelo cinema, à vida multidimensional do visível, que devemos aceitar com alegria e amor, criando novas relações entre a consciência, as palavras e o corpo.

Um ciclista, com um molho de galhos atado nas costas, pedala uma bicicleta suspensa no interior mobilado de um quarto.

A Gaze from the back’ é a sua mais recente exposição, patente na Galeria Belo-Galsterer, em Lisboa. Pode falar um pouco sobre os novos trabalhos aí apresentados?

Sobre os trabalhos em exposição prefiro por agora não me pronunciar. Mas posso dar uma pequena informação sobre o título. A gaze from the back, que gostava de ter conseguido traduzir para português, refere-se àquelas situações em que sentimos um olhar na nuca, quando temos a impressão de que alguém nos está a olhar por trás; voltámo-nos e vemos que a nossa intuição foi  confirmada.

+ info:

Pedro Sousa Vieira

Galeria Belo-Galsterer

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Catálogo da exposição: Preto e Branco


(C) imagens: cortesia do artista Pedro Sousa Vieira e Galeria Belo-Galsterer, Lisboa, 2014.

notas do texto:

(1) excerto do texto do Catálogo da exposição no Centro Cultural Vila Flor, 2011.