Susanne S. D. Themlitz: Lá em baixo fica iluminada a sombra
> 01.03.2014
Susanne Themlitz (Lisboa, 1968), nome de referência na atual cena europeia, apresenta a sua produção mais recente naquela que será a sua quarta exposição na Vera Cortês Art Agency, um espaço familiar para a artista. Como nota característica destes novos trabalhos, observa-se o deslocamento e ampliação das suas preocupações mais recentes, focadas na redefinição das fronteiras entre disciplinas e materialização de cada técnica através da utilização inesperada de elementos próprios de umas nas outras. Assim, se recentemente víamos como as suas preocupações a levavam a questionar a definição do desenho a partir de muitos dos elementos que tradicionalmente se atribuem à escultura – e vice-versa –, nestas novas peças os deslocamentos e migrações entre fronteiras afetam também, amplamente, a definição do pictórico.
Sem dúvida que todo este processo tem origem em preocupações mais profundas, intrínsecas à sua poética, já que as formas de Themlitz se resolvem frequentemente a partir de uma amálgama sensual das ordens naturais: nelas, o vegetal, o animal e o mineral misturam-se até ao ponto de serem indistinguíveis. Talvez por isso, não seja coincidência a atenção que, nos últimos anos, a artista tem dado a fungos e cogumelos, cuja multitude de espécies e famílias ocupa um lugar específico na classificação dos seres vivos, separado tanto da flora como da fauna.
No século XVIII, dentro do universo rococó, a rocalha ocupava um papel central, precisamente equidistante entre o vivo e o morto, o natural e o artificial, entre o rizoma e a simetria, o orgânico e o inorgânico… Característica deste estilo, esta fórmula é desenvolvida a partir da mistura de fragmentos heterogéneos, que a rocalha converte em um todo unificado: rochas, conchas marinhas, caracóis, folhas e ramos, etc., numa busca de construções onde a forma desentende a função, e a arte expressa uma experiência vivaz das matérias do mundo.
A obra de Themlitz também nos remete para um mundo sensual, profundamente ligado ao corpo (os conteúdos morais, religiosos, políticos ou sociais nunca são explícitos), pelo que a psicologia e o emocional impõem-se perante o espectador como prioritários. Assim, tanto nos seus desenhos e pinturas, como nas suas esculturas e instalações, a artista trabalha frequentemente aproximando fragmentos de origens muito diversas que, no espaço da representação, são forçados a conviver com uma intimidade inesperada. É este encadeamento incessante que outorga à sua poética um inegável rasgo surreal e onírico, já que em cada metamorfose as figuras transformam-se umas nas outras sem que haja mediação do sentido.
O carácter fluido, como que liquefeito, dos mundos de Themlitz (afetando tanto os seres, os espaços, e os objetos que ali vemos) está também relacionado com este contínuo vaivém da forma-significado entre as suas mãos. Podemos mesmo detetá-lo na forma como a artista escapa sempre ao fechamento das diversas disciplinas, fazendo com que cada uma se extravase na seguinte: o desenho conquista a presença da pintura ou adquire as dimensões da escultura e do objeto; o escultórico amplifica a sua natureza na complexidade da disposição dentro da sala de exposição, transformando-se em instalação; a instalação e a performance constroem frequentemente um relato que é registado nos seus vídeos; mas vemos aí aparecerem novamente os seus objetos e esculturas, e a forma como o cenário nos remete para texturas, materiais e estados da matéria (viscosidade, oleosidade, etc.) próprios da pintura…, num laço que Themlitz mantém permanentemente aberto, enriquecendo cada uma das suas produções e que, nesta exposição para a Vera Cortês Art Agency, alcança agora uma nova dimensão e traz novidade para o campo do pictórico, como já tínhamos assinalado.

De facto, é frequente que os componentes de cada uma das suas produções se desliguem do conjunto original, voltando a aparecer noutros momentos, noutras peças, transformados ou não, para compor ou dar lugar a novos trabalhos. Desta forma, como se de uma reciclagem infinita se tratasse, os elementos que momentaneamente se cristalizaram numa organização do sentido, adquirem liberdade para construir frases ou relatos inéditos, transfigurando-se eles mesmos (a tela de um grande quadro pode ser recortada para dar lugar a fragmentos com significados autónomos), ou não (um desenho emoldurado pode perder a sua autonomia e passar a fazer parte de uma escultura como mais um componente da sua assemblagem, ou ser uma peça dentro de uma instalação complexa).
Através destas operações, Themlitz deseja aflorar momentos de relativo controlo, falsamente automáticos, que têm como resultado uma variedade de registos, fazendo com que no seu trabalho possamos encontrar desde representações figurativas, mais ou menos minuciosas, ocasionalmente decididamente académicas, até momentos nos quais a matéria da pintura, por exemplo, ou dos elementos gráficos, se manifesta com absoluta espontaneidade: arabescos, rabiscos, grumos de matéria, superfícies untadas com óleo batido, empastamentos exagerados…
Assim, figuração e abstração não são categorias que possam ser aqui completamente diferenciadas. Do mesmo modo que as suas personagens são frequentemente o resultado da mistura de vários seres (o humano redesenhou tantas vezes as suas fronteiras com o animal…), os seus espaços obrigam-nos a interrogar continuamente o seu estatuto: serão cenários fictícios – teatros, dioramas, montagens – ou encontramo-nos perante uma paisagem real, de horizonte aberto? São exteriores ou interiores? Qual é a sua verdadeira escala? – Óscar Alonso Molina (Dezembro 2013)
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(C) Texto e imagens: Cortesia Vera Cortês Art Agency, Lisboa, 2014.