Tão alto quanto os olhos alcançam
13.11.2014 – 15.03.2015
Fórum Eugénio de Almeida (Évora)
Curador: Delfim Sardo
Artistas: Stephen Balkenhol, Joseph Beuys, Michael Biberstein, Fernando Calhau, Rui Chafes, José Pedro Croft, Tacita Dean, Jack Pierson, Robert Gober, David Hammons, Cildo Meireles, Ana Mendieta, João Onofre, Felix Gonzalez Torres, Francisco Tropa, Jeff Wall.
A Fundação Eugénio de Almeida apresenta ‘Tão alto quanto os olhos alcançam’, exposição que propõe uma leitura cruzada entre a arte sacra e a arte contemporânea, assinalando o culminar de uma trajetória de mais de uma década de inventariação do património artístico da Arquidiocese de Évora e de divulgação da arte contemporânea. A mostra, que encerra ainda o ciclo da programação inaugural do Fórum Eugénio de Almeida, inclui diversas obras relevantes de pintura, escultura e paramentaria provenientes de instituições de culto, bem como de arte contemporânea, de artistas como Joseph Beuys, Michael Biberstein, José Pedro Croft e Fernando Calhau.
Tão alto quanto os olhos alcançam parte de uma situação contemporânea dúplice: por um lado, a arte a partir do modernismo foi perdendo a noção de transcendência em favor de uma missão derrisória e enfeudada às questões da crítica e da avaliação das suas condições de possibilidade enquanto arte; por outro lado, existe na arte contemporânea uma clara nostalgia em relação a uma capacidade da arte se dirigir a zonas mais densas da nossa relação com o mundo. Nesse sentido, a exposição ‘Tão alto quanto os olhos alcançam’, comissariada por Delfim Sardo, faz um percurso por artistas e obras, num contexto internacional e globalizado, que são testemunho da ponte entre imanência e transcendência que só o universo artístico pode corporalizar.
A alguns artistas foram solicitadas obras concebidas especificamente para a exposição (José Pedro Croft e João Queiroz), noutros casos foram solicitadas peças aos próprios ou a colecionadores.
Ser cego e, no entanto, ver
Nos assuntos recorrentes da arte moderna e contemporânea, aqueles que ocupam uma boa parte das interpretações, dos comentários e das afirmações dos próprios artistas, encontra-se excluída a referência à transcendência. Quando surge é, normalmente, para fundamentar uma obra ou um percurso que não teria na sua presença a sua razão de ser, mas assentaria numa outra instância a sua causa (e em duplo sentido, também como desígnio). Desta justificação deveríamos excluir – o que não é razoável, mas lá iremos –, todas as exterioridades que sejam listáveis como circunstâncias de contexto, seja ele político, social, económico ou antropológico. Resta assim um campo que diria respeito ao indizível, ao que não se consegue ver, ao que reside num campo de expectativas morais ou ao que parece remeter para um discurso metafísico, frequentemente alheado das próprias obras, ou que as toma como interruptores de discurso ou pensamento. Esta situação esquece que a produção artística procura confrontar-se com exterioridades que lhe são sempre transcendentes, isto é, que não possuem no seu interior a sua fundamentação. Confronta-se com o mundo, com uma qualquer formulação do real, definindo para si uma possibilidade ficcional sobre a sua mútua relação. Esta noção de real possui as mais variadas formulações, desde a definição de um campo que corporaliza a tensão social e política e se afirma como uma possibilidade utópica até um real que, no sentido místico, pretende ser o campo platónico da verdade.
A história da arte moderna passa regularmente por esta ambivalência de formulação, sabendo que o seu centro reside, provavelmente, na cruz entre abstração e concreção que surge desde Piet Mondrian e Malevitch, estabelecendo uma simbiose entre os processos de não-representação e a crença (ou a apaixonada defesa argumentativa) de que esse campo de não representação coincide com uma realidade absolutamente concreta, portanto com uma efetiva realidade.
Curiosamente, esta tipologia de pensamento sobre a relação entre arte e realidade viria a desenvolver um eco político intenso, o que é patente precisamente na ligação entre Malévitch e o regime dos sovietes. No caso de Mondrian, o seu interesse pela Teosofia (foi membro da Sociedade Teosófica Holandesa desde 1909) é estruturante da forma como concebe a sua pintura, transformando as motivações estéticas do seu paisagismo, transfigurado em razões essencialmente filosóficas e, nestas, dando primazia a um interesse pela procura da totalidade e de uma verdade que estaria para lá do campo do visível, se por este entendermos a vinculação à materialidade do mundo representável, mas que se pode de alguma forma manifestar na abstração, tomando esta como a possibilidade de entabular um diálogo com a Verdade, como defende José Gil (1). Esta abstração é, assim, realista porque se dedica a uma realidade mais real do que a materialidade do mundo, total na sua universalidade. De alguma forma, o mesmo se passa com Malévitch, embora num sentido diverso de assunção da transcendência. Esta passa a ser entendida, ou como totalidade da experiência na sua formulação suprematista – como flutuação de planos a partir das cores primárias livremente jogadas no espaço – ou como transcendência de uma totalidade investida no político, o que se viria a manifestar na sua obra, sobretudo entre 1915 e 1927. O sentido totalitário posterior convocou uma conversão da totalidade do abstracto (entendido como absoluta concreção) num regresso à figuração investida numa épica da Rússia-como-a-grande-totalidade, na sua versão soviética. No entanto, a justaposição entre abstração e concreção, tão importante para os processos das primeiras vanguardas, migraria para as outras metamorfoses da ideia de “concreto” que, ora remete para um realismo metafísico – sob a forma de uma espiritualidade heterotópica e múltipla –, ora se viria a manifestar como uma possível ideia de união entre arte e vida, entendida esta como quotidiano.
Curiosamente, nenhuma destas hipóteses viria a ser aquela que transformaria a relação entre a Igreja Católica e a arte moderna numa equação complicada, mas a ideia, claramente expressa na Encíclica de 1907, “Contra o Modernismo”, de que a questão da arte moderna era a sua paixão pela imanência, permanece como um peso.
De facto, a arte moderna vive tão fascinada pela fenomenologia da relação com a obra na sua imanência, como pela questão da inevitável transcendência (do sentido, da razão, da interpretação, como do outro). No entanto, o eco do interesse pela imanência, pela relação que a sensorialidade estabelece, pela complexidade que começa a ser atribuída aos processos de apresentação da obra, que as questões da transcendência convertem-se em derivados da hermenêutica, desvinculando-se assim daquilo que a arte moderna tinha descoberto: a exposição como dispositivo.
Se entendermos a história da arte moderna como a história da exposição, na medida em que as noções de portabilidade da obra e de acesso público são concomitantes e em boa medida inseparáveis, a relação, até aqui centrada no artista e no acto criativo desloca-se para uma outra instância, a da relação entre a obra e o espectador – sabendo que já não entendemos por obra cada momento reificado de uma determinada produção, mas a situação imanente do contacto imersivo. Ora esta situação, diversa e em boa parte substitutiva de um entendimento da obra de arte como representação (e, neste sentido, enquanto remissão para uma transcendência, quanto mais não seja semântica) por um entendimento da obra enquanto momento presencial, recentra a relação com o espectador numa construção que corporaliza uma situação. Nesse sentido, poderíamos dizer que a arte moderna se encaminha na direção de uma performatividade progressiva, isto é, do seu desempenho enquanto entidade que, num espaço e num dado contexto, desenvolve e potencia um conjunto de relações fenoménicas que são elas mesmas o seu destino.
Delfim Sardo | Excerto do Texto do Catálogo
+ info:
(C) imagens e texto: cortesia da Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 2014.
1) José Gil, “Mondrian, a paisagem e o ritmo” in Mondrian. Amadeo: da paisagem à abstração. Porto: Museu de Serralves, 2001, p. 35.