Julião Sarmento: Terra Incognita

 

 Galeria Fonseca Macedo (Ponta Delgada, Açores)

> 4 de Outubro, 2014

Terra Incognita, d’après Julião Sarmento

Julião Sarmento expõe o seu trabalho pela primeira vez na Galeria Fonseca Macedo, em Ponta Delgada, nos Açores, apresentando uma selecção de obras que fazem parte da série “Terra Incognita”. A diversidade de suportes técnicos e plásticos associa-se ao registo da manufactura e da fisicalidade que o trabalho de atelier presentifica, nomeadamente na combinação de materiais pobres com matérias sujeitas a processos tecnológicos avançados. Refiro-me aqui, especificamente, à escultura inédita presente na exposição, intitulada “Broken Alice”, de 2014. Esta obra, transmutada e fragmentada, sucede a um conjunto de esculturas inspiradas na escultura de Degas “Petite danseuse de 14 ans” (1881).

A relação do artista com a memória, enquanto processo linguístico e cognitivo, cruza meios de diferentes tempos históricos e propõe-nos uma conjugação de interpretações do mundo que, nos seus procedimentos artísticos, se afasta do documento e do comentário para nos confrontar com indícios e referências que revelam uma necessidade transgressiva de ir ao encontro do paradoxo que enfrentamos para lidar com as imagens e a construção semântica associada à palavra.

O título desta série de obras, “Terra Incognita”, aproxima-nos de uma ideia de mapeamento sobre o desconhecido, itinerário utópico de uma infinita aproximação a outros territórios que se escapam à experiência do lugar e à necessária presença do corpo, mas que o acto artístico reconfigura pela transformação da técnica, que o ser humano reconhece como uma das possibilidades de acesso às diferentes gradações da realidade. Neste contexto, a série de imagens intitulada “Curiosity’s Eye” (2013), um portefólio constituído por um conjunto de mixografias, é exemplar do confronto que anteriormente referi, no sentido em que Julião Sarmento retribui à imagem fotográfica a fidelidade ao seu modelo. Aqui, é importante regressar a um outro nível do seu trabalho, que integra a palavra e a forma da sua inscrição. Como exemplo, uma das imagens refere-se à “HELLAS PLANICIA” e como legenda da imagem foram colocadas duas etiquetas inscritas sobre pressão – o sistema DYMO, etiquetas pretas com letra branca em relevo, que reconhecemos das lombadas e gavetas metálicas de arquivo, hoje desactualizadas. Mas essa imagem situa uma área do hemisfério Sul do Planeta Marte. Esse lugar é, decerto, uma terra incognita para nós, à qual apenas temos acesso através de um fragmento reproduzido e expandido no universo digital de onde foi resgatado. Mas também assim foi, para o geógrafo e astrónomo egípcio Ptolomeu (Séc. II), a transposição para a cartografia de um planisfério terrestre que mapeou a existência e o prolongamento de uma presumível extensão do mundo ainda não experienciado. Contudo, as imagens, captadas no planeta Marte, em 2012, pela sonda espacial Curiosity, são recontextualizadas através do seu modo de reprodução (caracterizado por um alto relevo |1|) que acentua o carácter veritativo das mesmas, como se tratasse de uma amostra inventariada num arquivo científico onde o artista teria realizado uma série de fotografias.

A diferenciação que Sarmento emprega na forma como trata a materialidade do que é visível pode colocar-nos no centro de um labirinto, onde os desenhos geométricos inscritos nas pinturas (por exemplo, a obra “Jabbah”, 2014) têm uma raiz geométrica, aparentemente euclidiana, mas aqui iniciada no estudo dos fractais, que se confrontam com um fragmento apropriado e redesenhado de uma obra de Marcel Duchamp, intitulada “Wash study for the second state of the etching The Top Inscription” (1965). O universo conceptual e poético que Julião Sarmento partilha connosco, através da sua obra, religa a nossa consciência sobre a visualidade do mundo enquanto correlato histórico da sua construção infinitamente fragmentária.

João Silvério | Junho 2014

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Julião Sarmento

Galeria Fonseca Macedo Arte Contemporânea


|1| A mixografia é uma técnica de gravura que regista todos os relevos, texturas e cores de uma impressão que exerce grande pressão sobre o papel utilizado. Esse processo reúne métodos tradicionais de gravura e litografia que realçam qualidades e texturas específicas do original.