Gabriela Albergaria | Time scales

> 20 de Setembro de 2014

Vera Cortês Art Agency (Lisboa)

O trabalho de Gabriela Albergaria usa frequentemente imagens que têm a sua origem no espaço de jardins e parques. Os jardins representam a nossa ficção do mundo natural e são construções muito elaboradas, sistemas de representação e mecanismos descritivos, mas também ambientes votados ao estudo e ao lazer, isto é, a processos culturais e sociais de produção de noções históricas do que é o saber e o prazer.

Assim, ao contrário do que poderia parecer, o seu trabalho não é sobre os jardins e muito menos sobre a natureza: refere-se aos processos de metamorfose cultural que sofrem as nossa imagens do mundo natural através de processos históricos, sociais, económicos e políticos que são, sempre, geradores de imagens. Os jardins e as imagens das espécies vegetais que neles se encontram são dispositivos que permitem à artista refletir sobre os processos de constituição de imaginários sobre a natureza que, mediados por sistemas de representação, constroem diferentes versões do que vemos como paisagem – ela mesma um sistema de estruturas materiais e hierarquias visuais complexa e culturalmente construída que define a nossa moldura do campo visual.

É este uso do jardim como sistema (com as suas ordens e métodos) e de diferentes versões históricas do imaginário sobre a natureza, que tem permitido a Gabriela Albergaria construir um mundo próprio no qual a visão da natureza, ora transplantada para dentro do museu enquanto escultura ou desenho, ora intervencionada no próprio lugar da sua representação – o jardim ou o parque –, é confrontada com os processos por vezes crus da sua constituição como forma. Em qualquer dos casos (na apropriação ou na intervenção) trata-se sempre de pensar os processos de representação e as metamorfoses que um ente natural sofre nos mecanismos da sua manipulação, reintegração, recontextualização ou reconfiguração, como também nos meros processos da sua inventariação, arquivo e catalogação – como no desenho Learning about Leaves, ou no catálogo das cores das folhas de um herbário feito de recolhas no Jardim Botânico de Brooklyn. Poderíamos mesmo imaginar que a obra de Gabriela Albergaria é sobre a produção da forma que poética e ironicamente surge a partir dos processos de alienação da natureza no contexto da sua domesticação e reificação.

No seu processo de trabalho, o uso do desenho e da fotografia tem servido este propósito, utilizando a memória histórica dos desenhadores ou riscadores, namorando com a ilustração, falando por vezes mais do protocolo da representação do que da espécie vegetal que lhe deu origem. É o caso do desenho compósito presente nesta exposição de uma Faia europeia, em relação à qual nos é dito ter sido substituída, após a sua queda, por uma Magnólia. A precisão da informação sobre a árvore quase nos diz que é ela o objecto da representação. Não creio que seja. Parece-me que o objecto do desenho é a substituição de uma árvore europeia por uma Magnolia acuminata, espécie do norte dos Estados Unidos e do Canadá, ou seja, é a melancolia do processo de desaparecimento.

A mesma melancolia está presente em três esculturas que aqui são apresentadas: na peça intitulada Gotas Congeladas, 2014, na escultura em bronze e vidro Dropping/Falling, 2013/14 e na Cunha de Equilíbrio, 2014 em porcelana. Em qualquer destes casos a escultura é uma rei ficação de um momento fugaz, de uma situação dependente de uma alteração climatérica (na primeira), de uma recolha (na segunda) e de um processo técnico de abate (na última). O facto de, em cada uma destas obras, um elemento recolhido (a memória das gotas no degelo, uma folha de Anthurium wendlingeri ou uma cunha usada para controlar o abate de uma árvore), ter sido, a partir de processos históricos da escultura objetual (a porcelana, o vidro e a passagem a bronze), convertidos em preciosas taxidermias escultóricas, reifica o detalhe. Ou seja, fossiliza por processos da tradição mais nobre da artesania, o processo melancólico da evocação, criando uma distância que não é já da ordem da empatia, mas da elegia.

E assim, um processo melancólico de evocação é convertido num protocolo irónico a que não falta, no entanto, o encanto estético do caráter precioso, moroso, delicado e a qualidade intrínseca da própria manufactura. Se alguma dúvida houvesse, a brutalidade do plinto – uma banal caixa de cartão para o transporte, virada do avesso, aí está para tirar as dúvidas: a contradição interna do processo, entre fragilidade, acaso, método, fugacidade e perenidade constrói a complexidade daquilo que, numa primeira instância, poderia passar por um encantamento. Que, de facto, existiu e foi meticulosamente desmontado.

Uma das peças mais misteriosas em exposição é o conjunto de tapeçarias em 3 cores: terra siena, terra úmbria e amarelo ocre. Há uma explicação primeira, a de que estes são os pigmentos que se encontram na natureza, aqui, no entanto, identificados pelo PANTONE correspondente, ou seja, rebatizados a partir da toponímia sintética produzida para a reprodução mecânica – e agora digital. Estas são, também, as cores das terras férteis, como ensinou Joaquim Rodrigo, fantasma que também povoa estas obras. A cor, esvaziada da sua vacuidade ontológica, deixa aqui de ser um predicado radicalmente subjectivo para passar a ser uma possível objectividade, o agente da produção de uma distância. Esta distância é melancólica porque é irónica e não apesar de o ser e aqui reside a deslocação, o desvio de sentido e a metamorfose.

A Gabriela Albergaria interessam os jardins, os parques, as alterações climatéricas nos passeios que dá, as árvores para onde olha, as folhas que recolhe. O seu trabalho, no entanto, interessa-se por outra coisa: pela melancolia da reconversão, pelo carácter ineludível da mudança, pelo fantasma da morte que espreita, eloquente e pequena, de cada vez que alguma coisa é representada. A condição de possibilidade para ser artista é a fina ironia que em cada taxidermia espreita.

Defim Sardo

Julho 2014

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Gabriela Albergaria

Vera Cortês Art Agency

 

A galeria encerra a 3 de Agosto para férias, reabre a 2 de Setembro

(C) Texto e imagens: cortesia Vera Cortês Art Agency