Pedro Guimarães | Valley
A Pequena Galeria (Lisboa)
> 2 de Agosto, 2014
Estamos no Vale do Rio Côa. Por entre as fragas e os penhascos, o sol rasante divaga, revelando-nos com sombras duras um bestiário fantástico, que vai ganhando diferentes formas, ritmos, direções e ações. Nestes golpes de vista abrem-se espaços de ilusão que nos envolvem jogando com os nossos sentidos. Os espaços criados pela incerteza do que vemos forçam a nossa imaginação para além da realidade e para o interior do universo da criação humana. Os feixes de luz que tocam as superfícies duras tanto nos podem contar histórias paleolíticas – histórias de um povo nómada de caçadores recolectores que viveu e sacralizou as margens e as encostas de um rio – como nos podem contar histórias recentes – histórias que incendiaram a opinião pública e que ainda hoje fazem eco nos diferentes setores sociais, económicos e culturais de Portugal. Do projecto Valley, da autoria de Pedro Guimarães, poder-se-ia dizer que se trata de uma narrativa costurada com linhas de terra, água, ar e fogo, alçadas numa paisagem telúrica de montanhas, rios e vales. Horizonte remoto onde o homem se criou, geração após geração, procurando harmonizar e suavizar uma natureza brava e silvestre.
Sofia Figueiredo | Investigadora de Arte Rupestre (Vila Flor, Junho de 2014)
‘Valley’
Sim e não, passo a explicar. Este é, ao mesmo tempo, um projecto artístico e um levantamento arqueológico. Deixem-me explicar, contar a história do início. Isto começou por ser, fundamentalmente, uma abordagem sobre a necessidade compulsiva que temos – sempre tivemos – de registar imagens. Seja como for, com tinta, sais de prata, electrões ou, à falta de melhor, à base da pedrada, silex contra xisto, que ganhe o mais forte. E, já agora, e se não for pedir muito, que o suporte seja o mais nobre, o mais duradouro possível. E que o artista, artesão, troglodita, homem das cavernas, o que lhe quiserem chamar, seja gente de traço delicado e requintado, capaz de reproduzir com notável elegância o que está, esteve ou irá estar à sua frente, como um diário. Ou manual de instruções da própria vida. Não sabemos e, julgo poder afirmar com toda a convicção, nunca o saberemos. Ou seja, estas fotografias são, por força das circunstâncias, sobre o território que é comum à Arte, à Ciência e, claro está, ao meu próprio imaginário místico.
Sim, tudo isto porque, muitos muitos anos depois dos rabiscos aqui explorados terem sido feitos (dezenas de milhares nuns casos, meros séculos noutros – única certeza que a Ciência nos pode dar), surgiram certos cientistas que, na sua tecnológica busca pelas razões mais profundas de todas as coisas, olharam para o que se começava a esboçar nos objectos fotográficos em questão, e neles reconheceram imediatamente o nobre estatuto de documento científico. E é neste preciso momento, algures na Primavera de 2009, que a documentação fotográfica dos desenhos dos brutos paleolíticos passa de devaneio privado, pago às custas do autor, a encomenda institucional, com direito a cachet e tudo (outros tempos). A partir daqui tudo se torna mais simples e repetitivo: menos pensamento e mais acção. Há então que fazer uma recolha exaustiva dos núcleos mais importantes de Arte Rupestre do Parque Arqueológico do Côa. Toca a andar. E à noite, a dormir no chão ou dentro do jipe, conforme a meteorologia permitir.
E se bem que a natureza institucional do acto abriu as portas aos montes e vales desertos do Parque, normalmente vedados ao comum dos mortais, por outro lado, a falta de vias de comunicação, a orografia errante e a vegetação hostil, frequentemente fizeram com que curtas distâncias se tornassem longas viagens. Nestes montes minutos são horas, horas são dias e não há como ir e vir. Era ir e ficar, pelo menos até o assunto estar resolvido de forma latente na película fotográfica. E assim se passou um Verão, uma Primavera, um Outono, um Inverno e mais uma Primavera. E durante todo este tempo lá fui convivendo com as pedras, os bichos e as criaturas que habitam as superfícies imaculadamente lisas dos afloramentos de xisto da região. E de cada uma delas elas fui conhecendo os nomes próprios e os números com que estão cadastradas nas bases de dados dos cientistas. Senti os extremos dos sol da chuva e da neve, vi a terra pintada de todas as cores. E durante este tempo, cruzei-me com muita gente faladora. Quase todos ou pastores ou arqueólogos ou guardas florestais, e das suas bocas ouvi à noitinha estórias bem contadas (e bem regadas), repletas de problemas que já na altura seriam contemporâneos. Estórias da vida daquelas bestas e outras figuras mais ou menos humanas que ainda hoje vivem dentro da minha cabeça.
Pedro Guimarães, Lisboa, 19 de Junho de 2014
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