O Olho do Tigre | Obras da Colecção Sarmento

Appleton Square (Lisboa)

Curadoria: Ana Anacleto

> 1 Março, 2014

The Sublime Issue of The Tiger’s Eye   (1)

Coleccionar é resgatar objectos, objectos valiosos, da incúria, do esquecimento, ou simplesmente do ignóbil destino de pertencer a outra colecção que não a nossa. (2)

Quando nos detemos um minuto para pensar no motivo pelo qual acumulamos, reunimos, compilamos, juntamos, coligimos, genericamente, coisas, normalmente objectos, confrontamo-nos com a inevitável relação que temos com o passado.

Sabemos que, ao coleccionar artefactos, imagens, memórias, estamos também a conferir-lhes um valor adicional (que excede o seu valor intrínseco), uma vez que ao resgatá-los do imenso fluxo de objectos diariamente produzidos, estamos necessariamente a sublinhar a sua condição de documento. Cada objecto é a sua representação formal mas é também o conjunto de informação que consigo transporta. É simultaneamente ele próprio e o contexto espacio-temporal em que surgiu, a matriz sociológica que lhe deu lugar, e muito particularmente um relato do processo que o fez chegar até nós.

O trabalho da memória assenta, em grande medida, no universo do detalhe, contrapondo-se ao trabalho do pensamento abstracto alimentado por processos de generalização. Nesta medida, os objectos que coleccionamos adquirem um papel fundamental na construção de uma ideia de passado, alimentando a nossa crença no significado e na importância das vidas dos nossos antepassados, ou mesmo no passado (ainda que recente) da nossa própria vida.

Os arquivos e as colecções adquiriram, no nosso tempo, uma importância primordial na forma como lidamos com a história. Na sua condição de repositórios de acções sob a forma de objectos ou registos, actuam como uma espécie de cristalizadores da experiência humana.

Não deixa de ser curioso, que a este propósito, pensemos no papel da curadoria enquanto actividade cuja relação com os objectos se estabelece, em primeira instancia, através dos processos de preservação e conservação. Cuidar para preservar. Cuidar para resgatar. Cuidar para garantir que está e que é. No fundo, cuidar para poder dar-se continuidade ao fluxo da história.

Inscrever um determinado objecto numa colecção é garantir a sua possibilidade de vida, conferindo simultaneamente à colecção um carácter vivo. A incompletude de uma colecção é um sinal da sua vitalidade. Tal como no caso do arquivo – que ambiciona à universalidade, a poder abarcar todo o conhecimento alguma vez produzido sob um determinado tema ou acontecimento – também a colecção ambiciona a uma certa universalidade, mas é justamente na aceitação dessa sua impossibilidade que recai a sua eficiência.

A actividade coleccionista surge, estamos convencidos, também como forma de alimentar o desejo. O desejo de posse. Um coleccionador, no verdadeiro sentido do termo (excluímos aqui a análise dos comportamentos motivados por questões económicas, de ambição ou procura de ascensão social, muitas vezes também associados ao coleccionismo) é normalmente dotado daquilo a que podemos chamar um impulso coleccionista, que o leva naturalmente a acumular.

Julião Sarmento, poderemos dizer, é um destes casos. Coleccionou sempre. Todo o tipo de objectos. No início da sua carreira mandou produzir um carimbo com o qual identificava as suas obras e que mencionava assumidamente essa sua condição: “Julião Sarmento: Coleccionador”. Estávamos perante alguém que, no momento inicial da sua projecção pública se apresentava, no âmbito da sua prática artística, como coleccionador.

De facto, e ao longo dos anos, verificamos que essa sua condição não se mantém somente na sua vida – tendo continuado a coleccionar, de facto, muitíssimo variados tipos de objectos – mas é intrínseca à sua própria prática artística, na medida em que toda a sua produção se configura como uma espécie de relicário, de um enorme repositório de imagens, objectos, memórias ou visões, que vão surgindo ciclicamente, embora em contextos aparentemente muito distintos.

À sua natureza recolectora alia-se um desejo de preservação da vida, muito presente nas incursões de memória que atravessam toda a sua obra.

Aceitando que coleccionar é também uma forma de criar relações e que uma colecção pode ser simultaneamente um registo cartográfico onde essa teia de relações naturalmente se inscreve, temos no objecto da sua colecção de arte contemporânea um magnífico documento, não só do seu universo de interesses, mas também dos percursos e das relações sociais que foi criando com os seus pares.

As relações de amizade ou de empatia que, ao longo do tempo foi estabelecendo com a comunidade artística sua contemporânea, e que extravasam largamente o contexto nacional, alimentam a sua colecção e potenciam, de forma, indelével o reforço de um desejo de pertença. Reconhecemos no impulso coleccionista também essa vontade, e, de certa forma, também a convicção de uma garantia de reforço de uma possibilidade de inscrição no mundo.

No fundo, temos no objecto da sua colecção de arte contemporânea, um espelho da sua comunidade. E, neste sentido, também um reconhecimento da sua história.

(…) each piece is chosen for its own sake

and always should be approached as such (…) 3

A este propósito ocorre-nos pensar numa publicação (hoje de culto), editada nos Estados Unidos, entre 1947 e 1949 (apenas com 9 números publicados) e a cujos editores – o pintor John Stephan e a escritora Ruth Stephan – resolveram chamar “The Tiger’s Eye”.

Dedicada à arte e à literatura, com uma curta distribuição dos seus números iniciais, atinge um momento de maior afirmação no ano de 1948 – ano em que, curiosamente, nasceu Julião Sarmento – com a entrada de Barnett Newman para o seu conselho editorial.

Editada por artistas e produzida com base na colaboração somente de artistas, recusava a abordagem crítica e analítica, privilegiando a obra literária e a boa reprodução de obras de arte acompanhadas, muitas vezes, por comentários ou curtos ensaios da autoria dos próprios artistas.

Com um tema atribuído a cada um dos números, e procurando sobretudo uma concentração de colaborações fixada na qualidade e inovação das propostas artísticas, foi um veículo fundamental para a divulgação da produção inicial dos expressionistas abstractos e das manifestações artísticas ocorridas no período do pós-guerra.

Tratava-se, no fundo, de um lugar de encontros, que assumia a sua predilecção por essa ideia de comunidade, onde rapidamente o lado mundano das relações entre amigos artistas se transformou numa comunidade tanto de colaboradores participantes – contribuindo, muitos deles, com obras produzidas especificamente para o contexto da revista – quanto de leitores interessados na experiência dessa partilha.

Nos seus objectivos encontramos a preocupação de levar a obra directamente ao encontro do espectador, permitindo-lhe aceder-lhe de forma pura, sem os habituais filtros da crítica de arte. No fundo assiste-se, no sentido da sua proposta, a uma preocupação formativa em relação ao publico, não exactamente através da tradicional abordagem interpretativa, mas antes permitindo-lhe relacionar-se com os objectos literários e artísticos na pretensão da educação do gosto e do olhar, privilegiando a experiência como modus operandi.

É neste registo que entendemos o papel de uma exposição. Privilegiar a experiência na relação directa com os objectos, prevendo, dentro do possível, um encontro que se pretende feliz, entre o olhar do espectador e o olhar do curador.

Tyger, tyger burning bright/ In the forest of the night/ What immortal hand or eye/ Could frame thy fearful symmetry? (…)  4 

Não por acaso, resolvemos titular a presente exposição de O OLHO DO TIGRE, referindo-nos objectivamente a uma modalidade do olhar que reconhecemos em toda a prática de Julião Sarmento.

O seu duplo estatuto de artista e coleccionador suporta, em nosso entender, a construção de um olhar, ou melhor, de uma particularidade do olhar – a sua condição felina, voraz, perscrutadora, ávida.

Para o coleccionador, desejar e perseguir um objecto que pretende que faça parte da sua colecção, implica, em certa medida, uma postura de caçador. E aqui a metáfora do tigre é absolutamente eficaz, uma vez que, no momento da perseguição, o seu olhar se fixa na presa não mais a deixando até ao derradeiro momento da conquista.

A dualidade inscrita na figura do tigre que combina uma inebriante beleza estética com uma ferocidade primordial, está plasmada no conhecido poema de William Blake e na forma como lida simultaneamente com a questão da criação e da inspiração e com o conceito de sublime (na presença do mistério e do medo).

Fala-nos do fogo presente no olhar do tigre. Uma centelha de vida, misteriosamente bela, mas simultaneamente terrível, que como reflexo da natureza que a criou, consegue, através de actos da grande violência, manifestar a plenitude da sua força bela. Não podemos escudar-nos também ao desafio moral implicado no texto e, sobretudo, ao questionamento relativo às implicações morais inerentes à criação de tão misteriosa criatura. Como pode ter sido possível aliar, numa mesma figura as duas categorias que definem judicativamente o nosso universo das coisas e das acções: o bem e o mal?

Durante o decorrer do processo de concepção desta exposição, e já depois de termos decidido titulá-la O OLHO DO TIGRE, deparámo-nos com a existência de uma obra de Julião Sarmento, datada de 1975, com o título “Tiger, Tiger…”. De acordo com a sua produção, à época, inscrita nas práticas pós-conceptuais, a sua formulação resulta num conjunto de duas fotografias de um (suposto) tigre, algures no seu (suposto) habitat natural, acompanhadas da transcrição das primeiras linhas do poema de William Blake e de alguma informação relativa às variantes daquela espécie animal.

Em conversa com o artista, tornou-se imediatamente evidente a necessidade de a trazer, para o contexto deste projecto, sob a forma de documento.

Decidimos tê-la aqui presente como referência (reproduzida no convite da exposição e na capa desta publicação) mas sobretudo como uma espécie de nota mental, que ajuda a reforçar a convicção (que já tínhamos) de que há processos e criações que não acontecem por acaso.

 – Ana Anacleto, Janeiro 2014

+ info:

Appleton Square (Lisboa)

(C) imagens e texto: Cortesia de Appleton Square (Lisboa). Texto da curadora Ana Anacleto.

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(1) título tomado de empréstimo ao editorial do nº 6 da revista “The Tiger’s Eye”, New York, Dezembro 1948, p.57

(2) Sontag, Susan, “O Amante do Vulcão”, Quetzal Editores, Lisboa, 1997, p.37

(3) Stephan, John/ Stephan, Ruth,“The Tiger’s Eye”, Nº 1, New York, Outubro 1947, p.53

(4) Blake, William, “The Tiger” in “Songs of Innocence and of Experience”, Amazon.co.uk Ltd., London, 2013, p.29