Uma linha dividida em duas partes
Kubik Gallery (Porto)
> 23.04.2015
Artistas: Horácio Frutuoso e João Pedro Trindade
Curadoria: Luísa Santos
“Uma linha dividida em duas partes”
Quando entramos na exposição “Uma linha dividida em duas partes”, rapidamente dividimos o espaço entre construções geométricas e imagens figurativas. Um olhar atento permite perceber que os trabalhos desta exposição estão unidos por uma série de ambivalências e camadas. Em primeiro lugar, o abstracto e o narrativo; por outro lado, a rigidez e a fragilidade; e, por último, a construção e a desconstrução que, por sua vez, se traduz na contradição entre pequenas histórias e grandes narrativas. Por outras palavras, a contradição entre o que define a História vivida e as inúmeras construções, reais e imaginárias, rígidas e frágeis, que as tornaram no que entendemos hoje como realidade irrefutável.
Ainda antes de entrarmos na Galeria, do lado de fora, vemos uma estrutura de cartão em módulos. Modular Design (2015), de João Pedro Trindade, compõe-se por tiras de cartão de aparência frágil, apesar da rigidez inerente a qualquer estrutura. Reminiscente das formas do Construtivismo (definido por El Lissitzky, em 1922, enquanto arte construtiva que não decora mas que organiza a vida), Modular Design éum sistema de encaixes, como as divisórias dos interiores de caixas que organizam, metódica, rígida e linearmente, os seus conteúdos. Os módulos de cartão continuam num caminho que nos conduz até ao interior.
Uma vez dentro da Galeria, somos, paradoxalmente, transportados para um imaginário de exterior. Um tapete (Tirado do Sério, 2013, João Pedro Trindade) de rua aparece aqui pendurado na parede. Intencionalmente descontextualizado do espaço urbano, conta as marcas do desgaste resultantes tanto da acção humana, das passagens contínuas, como da acção da natureza, da exposição solar. As marcas da calçada, em quadrados iguais, ora mais fortes ora mais ténues, deixam imaginar a posição do tapete em relação à entrada do edifício de onde foi retirado.
Na mesma parede, uma estrutura híbrida (Nómada, 2015, João Pedro Trindade) de suporte, mas com o mesmo aspecto frágil da construção de cartão de Modular Design, em mais uma reminiscência das formas Construtivistas, parece proporcionar o acesso a um ponto de difícil acesso. Contudo, o percurso da estrutura de madeira coberta a rede semi-transparente, feito junto ao tecto, desde a sala central, pelo corredor, até à segunda sala, acaba em si mesmo tal como o percurso de um andaime de um edifício em construção ao qual também não temos acesso.
Apesar do ímpeto de estruturar, dividir, encaixar e medir sugerir uma sociedade humana que pode ser quantificada, entendida e, em última análise gerida, João Pedro Trindade e Horácio Frutuoso sugerem o contrário. Sob os seus olhares intensos, as limitações das estruturas e medições são exploradas e as linhas ténues que as limitam são reveladas.
Ainda na sala central da Galeria somos confrontados com outro tipo de estrutura. Na pintura Paris – Dakar (2015), de Horácio Frutuoso, equilibristas juntam-se para formar uma torre humana. Do lado esquerdo, uma régua topográfica confere a escala à torre numa rigidez que se opõe à natureza das formas orgânicas dos diferentes corpos que se sobrepõem. Mais do que calcular uma altura, a régua reforça a natureza controladora mas inglória de quantificar distâncias.
Um tríptico (GPS, 2015, Horácio Frutuoso), com portadas listadas a branco e vermelho, lembra os trípticos religiosos e os momentos que implicam – ora abertos, ora fechados, ora reveladores, ora misteriosos. O interior desvenda, nas laterais,quatro vistas da Terra segundo uma perspectiva europeia, e, no centro, um labirinto, símbolo da complexidade impenetrável dos caminhos. O escritor argentino Jorge Luís Borges via o mundo como um labirinto do qual é impossível fugir, com caminhos tão desorientadores como ilusórios. O mundo que Horácio Frutuoso nos apresenta emGPS é precisamente baseado nesta impossibilidade. Estamos perante diferentes modos de ver o mundo e, consequentemente, de percebermos a nossa posição no mesmo: regra geral, num centro que críamos e que está inevitavelmente desfasado do centro dos Outros.
As perspectivas a partir das quais podemos entender a Terra (ou o mundo) voltam a ser questionadas na sala seguinte. Em World Tour (2014), de Horácio Frutuoso, pratos partidos e amontoados mostram representações diferentes do planeta, segundo os pontos de vista americano, europeu e segundo a projecção mercator. Talvez este seja, dos vários pontos de vista, o que melhor traduz a distorção inerente às perspectivas – como em qualquer projecção cilíndrica, em mercator os meridianos são representados por segmentos de recta paralelos entre si e perpendiculares aos paralelos terrestres. Essa geometria faz com que a superfície da Terra apareça deformada na direção leste-oeste, tanto mais quanto maior for a latitude. Ficamos assim perante uma visão distorcida da realidade como a entendemos.
Na mesma sala, somos transportados de volta à primeira sala. Manipulação Invisível(2015), de João Pedro Trindade, parece mostrar uma sombra de uma parte de um andaime, talvez uma parte da estrutura de Nómada. Um olhar mais atento revela que a sombra não existe enquanto sombra mas enquanto pintura que a materializou e devolveu a presença da grade que terá formado e limitado a tela. Tanto os andaimes, da realidade urbana, como as telas, da realidade da arte, parecem ser construídas por estruturas que são tão rígidas quanto frágeis.
No final do percurso (ou da história) da exposição, a pintura Encontro Diplomático(2014) e a publicação World Tour (2015), de Horácio Frutuoso, levam-nos para o imaginário infantil, com Babar, o elefante. Retirado do seu habitat (ou, muito simplesmente, da sua casa), na savana Africana depois de um caçador matar a sua mãe, Babar é levado para a Europa e educado a comportar-se como humano. Já adulto, regressa a África e, rei dos elefantes, impõe-lhes o que Edward W. Said designou de Orientalismo. Numa visão euro-centrista, Babar parte do princípio de que a cultura Oriental é tão diferente quanto inferior e, consequentemente, precisa de uma salvação do Ocidente, impondo aos elefantes em África os comportamentos humanos e europeus.
“Uma linha dividida em duas partes” refere-se à analogia de Platão que divide a realidade sensível da realidade inteligível sendo a primeira a realidade que permanece no campo da subjectividade das ideias e a segunda a realidade que parte da racionalidade da geometria e da aritmética. O conhecimento sensível parte das hipóteses e é chamado de entendimento, enquanto o conhecimento racional, designado de verdadeiro saber, é chamado de inteligência. João Pedro Trindade e Horácio Frutuoso questionam precisamente estas duas realidades e a linearidade desta divisão.
O conhecimento das culturas, das cidades e da sociedade pode aparentemente fazer-se a partir de um centro difusor e segundo uma estrutura, mas o que “Uma linha dividida em duas partes” nos mostra é que os canais para o conhecimento têm dois inícios ou dois fins, consoante a nossa posição, de um ou outro lado da linha. Por outras palavras, o que percebemos enquanto realidade é feito de um conjunto de visões que, não obstante as suas diferenças cruciais e fragilidades, são igualmente plausíveis e sujeitas a erro.
Luísa Santos
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