Rui Sanches: Reflexos na água

> 30 de Outubro, 2014

Appleton Square (Lisboa)

Numa entrevista realizada em 2007 e publicada no catálogo da exposição “Relações Formais”[1], que Rui Sanches apresentou na Casa da Cerca, Emília Ferreira pergunta ao artista: “Quando é que uma peça está acabada?” Esta questão é, por um lado, retórica na observação que fazemos do trabalho de um artista. A obra exposta está acabada. Por outro lado, pode considerar-se dialéctica no processo que esse artista desenvolve.

Rui Sanches recoloca a questão na sua resposta, revelando o reconhecimento da autonomia da obra liberta da sua condição objectual, que se exterioriza e presentifica como sujeito que o interpela. Esta interpelação é uma linha de definição ambígua. Por um lado, define um estádio da obra num duplo confronto, em primeiro lugar, com o autor e com o seu processo, e em segundo lugar, com o espectador na sua presença. Por outro lado, pode abrir um campo de possibilidades que o artista toma como ponto de partida, reinterpretando a obra finalizada num outro contexto. Como um texto que se retoma e se escreve a partir da matriz, tomando o modelo como procedimento de reinscrição.

Esta exposição de Rui Sanches no espaço da Appleton Square, intitulada “Reflexos na água”, propõe-nos o desafio de irmos ao encontro de transições e reflexões da sua prática artística, que não perde de vista uma atitude determinada que visa a sua investigação sobre procedimentos escultóricos plasmados na instalação do piso térreo e nos dípticos instalados no sala do piso inferior. Na sala principal, Sanches questiona o espaço expositivo sem o alterar, introduzindo um segundo espaço que transforma a sua taxonomia, e as respectivas relações que a escala e proporção convocam, regressando a uma obra, uma instalação que teve o seu primeiro momento numa exposição colectiva sob o título genérico “O Sonho de Wagner”, realizada em 2012 numa das salas do espaço da Plataforma Revólver.

Esta obra, intitulada “Reflexos na água” (2014), permanece fiel ao vocabulário material e sensorial que a instalação anterior possuía. Contudo, o seu estado anterior é agora um modelo que o artista revisita, num jogo poético e despudorado entre a prática do atelier e a memória de outros modelos que o trabalho do escultor sedimentou, compreendendo os diversos momentos do seu processo sem prestar tributo à finalização aparentemente justificada. A instalação é um espaço no interior de um outro espaço, mas que abdica de uma condição intrusiva através de um elemento escultórico e reflector que religa os dois espaços da galeria, numa estreita relação com a arquitectura construída e a arquitectura enquanto pensamento escultórico que inscreve   o movimento do corpo no espaço.

Os dípticos expostos na sala do piso inferior são obras sobre papel. Desenhos e fotografias impressas sobre papel de algodão, em dois formatos, que acentuam a sua investigação sobre a pré-existência do modelo e o trabalho do atelier. Podemos interpretá-las como paisagens interiores enquanto imagens de um outro lugar. Contudo, Rui Sanches usa a imagem fotográfica como registo fragmentário de uma composição tridimensional que a prática continuada do seu trabalho foi construindo demoradamente. O tempo é, então, um elemento que é pertença da escultura e da relação entre o modelo e o momento em que este cede o seu lugar a uma outra obra, que se desdobra na sequência dos dípticos. Os desenhos sucedem à imagem fotográfica (são-lhe posteriores) e, aparentemente, replicam formas orgânicas ou geométricas, contrastes lumínicos e sobreposições numa contradição quase verosímil entre duas linguagens que se acompanham. O desenho surge na sua autonomia austera, construindo e dissecando a memória visual da imagem impressa. O que é dado a ver na imagem fotográfica encontra no seu espelho uma reinterpretação que acolhe o gesto da mão, a firmeza da linha que selecciona, mas que se desprende da duplicação, resguardando a memória do seu referente. A obra está em processo de reconhecimento e reinventa-se em cada decisão que o artista dispôs entre o registo instantâneo e o acto persistente da escultura, e o do desenho, que o trânsito do corpo experimenta.

Os “Reflexos na água” são quase sempre um vislumbre encantatório que pode obnubilar o que, de facto, é dado a ver.

João Silvério | Setembro 2014

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Rui Sanches

Appleton Square


[1]  Ver entrevista de Rui Sanches com Emília Ferreira, in “Rui Sanches- Relações Formais”, catálogo da exposição, Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, Almada, 2007, p. 22.


 (C) imagens: cortesia do artista e Appleton Square, 2014.