Mauro Cerqueira: Gatunar
> 31.05.2014
Galeria Múrias Centeno (Lisboa)
O olhar absorto da classe trabalhadora
Daniel Barroca, 2014
Ter que falar – Bêbado:
Um homem bêbado sozinho numa esquina da baixa do Porto. A rua está em obras e o que a câmara de vídeo regista é um bêbado com um boné preto encostado à parede com uma sacola no chão. Depois do trabalho, no caminho para casa, já de noite debaixo da luz amarela dos candeeiros públicos, numa rua destruída, vedada por grades de ferro assentes em sapatas de betão, sem pavimento, sem circulação, em processo de gentrificação, suspensa, em crise, à espera. Em breve aquela esquina já não será lugar para bêbados que discursam. O bêbado ficou entalado entre a vedação e a parede e foi nessa posição que se pôs a fazer o seu discurso. Fala para o ar enquanto os outros passam, pessoas a que eu chamarei de não bêbados. O bêbado tomou uma atitude que foi a de falar na rua, no espaço público, que é um espaço que parece ter ficado mudo. O seu tom de voz sobe e desce, os braços gesticulam de indignação, articulando o incompreensível para os não bêbados, ele Protesta. O bêbado tomou uma posição política, radical, que é a de na sua condição de individuo falar para o colectivo no meio da rua! O colectivo circula em dispersão e ele faz o que pode.
Subo o volume do meu computador, abro os ouvidos para conseguir entender o protesto e como se não tivesse nada a ver comigo tento colocar-me na sua cabeça para entrar na lógica do seu discurso porque até acredito que a verdade pode muito bem ser canalizada por estados alterados da alma e porque me interessa compreender porque é que o Mauro Cerqueira gravou esta situação durante aproximadamente meia hora. Não se percebe o que diz e a câmara enquadra-o numa sucessão de planos, mais ou menos fixos, que vão renovando o olhar sobre a sua figura cómica e empenhada em, sem grande sucesso, exteriorizar uma lógica interna. Podia até ser um artista. O discurso do bêbado é, por enquanto, incompreensível para um não bêbado e é nessa condição que cumpre a sua tarefa. É este o sentido da comparação com o artista. Ele cumpre a sua tarefa de articular e atualizar o irreconhecível, a diferença, o que não tem tradução. O bêbado manifesta-se incompreensivelmente e é esse incompreensível que como espetador eu tento alinhar na minha vida.
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A câmara:
A câmara enquadra-o numa sucessão de planos, mais ou menos fixos, que vão renovando o olhar sobre a sua figura cómica. Por vezes oscila e sente-se a mão do operador, por vezes está fixa, aparentemente neutra. O seu posicionamento define a ideologia da imagem. É uma câmara às vezes participativa, que interage e dança com o objecto alimentando o acontecimento como no Baile do gatuno das cebolas (por ex.); por vezes apenas presente, que olha fixa, deixando o real acontecer, alimentando-se dele, como em quase todo o Ter que Falar – Bêbado e Casa a Arder.
Para se referir à realidade da Rua dos Caldeireiros o Mauro, por vezes, engendra uma estética amadora indecisa que tem a cadência do diálogo que ele estabelece com os seus habitantes, por outras, aproxima-se da linguagem do cinema clássico. Por exemplo, quando a câmara roda num movimento perfeitamente sincronizado com o Serafim como se este fosse um ator que é colocado em campo. É uma câmara ora indecisa ora precisa mas nunca inconsciente. O Mauro faz parte da comunidade da Rua dos Caldeireiros porque ele habita aquela rua diariamente, o número 123 é onde trabalha e o seu trabalho é estar naquela rua, olhar para ela e produzir a partir dos seu recursos. Ele olha aquela realidade a partir de dentro e é daí que ele manuseia a câmara. Não é o olhar curioso e superficial do turista. É um olhar presente, que se insere profundamente na complexidade do contexto e que entra e sai dos seus espaços privados (a casa do Paulo, a loja do Serafim e o corredor para o armazém, a tipografia do China). Esta rua é ainda o espaço de uma velha classe trabalhadora que vive, troca e partilha na rua. A rua é o espaço da comunidade, do colectivo, completamente diferente do espaço da classe média que é o espaço do isolamento individualista dos blocos de apartamentos. De algum modo, e obviamente com algum romantismo, um lugar como a Rua dos Caldeireiros, um entre tantos outros, representa o último reduto do colectivo nas nossas cidades.
A imagem é uma ficção porque é sempre uma construção do olhar filtrado pela técnica. É uma fragmentação do visível e tudo o que é fragmentar o visível é produzir uma versão do visível, é ficcioná-lo. As docuficções que o Mauro faz na Rua dos Caldeireiros no Porto são ‘ficções’ que canalizam o nosso olhar sobre a realidade deprimida dessa rua. O quotidiano do Serafim, do Paulo, do Ladrão das Cebolas e do Bêbado é o quotidiano da vida em extinção daquela comunidade que assiste absorta ao cilindrar do seu território por um progresso que destrói o estado social, que impõe a gentrificação do centro da cidade através de um programa de recuperação urbano que a vai expulsar do lugar que sempre habitou.
A Europa
Na imagem do bêbado, sozinho a gesticular confusão como se estivesse a abraçar a tarefa imperativa de fornecer a palavra que poderia mobilizar o presente e transformar o mundo, vi de repente a Europa.
No meu quarto em Beirute, no écran do meu computador, vi e vejo a Europa capitular. A Europa que foi invadida pelos mercados e pelas troikas. Portugal sob ocupação tecnocrática. Forças invisíveis e omnipresentes como deus que nos formatam a vida. E enquanto procuramos formular um discurso compreensível sobre essa invasão, sobre esse processo de ocupação violento mas sem armas de fogo, aquilo que queremos combater, consolida-se.
Relemos os velhos revolucionários e lemos os novos, Marx, Che, Cabral, Chomsky, Zizek, O Comité Invisível! Instruímo-nos contra um inimigo que sabe sempre muito melhor do que nós o que queremos porque circula no nosso sangue e modela o nosso desejo. Ao mesmo tempo que procuramos vias para o combater, sem pensar, com os gestos simples do quotidiano como ligar a televisão, ir ao supermercado, navegar na internet, somos seus colaboradores. Simplesmente somos incapazes de deixar de o replicar à nossa micro escala e de o desincorporar. Ele tem a capacidade de antecipar os nossos movimentos e de absorver os nossos gestos de resistência e de os transformar em alavancas para o seu próprio desenvolvimento. A lógica de que um sistema fornece sempre os instrumentos para a sua própria destruição parece ter sido invertida. A máquina que nos invade, que vem de todos os lados de fora e de dentro, é muito mais eficaz do que a nossa capacidade de lhe resistir. A resistência precisa de tempo para se constituir, precisa de reconquistar a mente e o corpo.
O que o bêbado no vídeo do Mauro me diz é que talvez não seja o discurso que nos levará aos instrumentos efetivos da resistência, que talvez o discurso não seja a via para a libertação, o discurso virá depois, o discurso sobre a revolução virá depois porque, se, e quando acontecer será incontrolável e o discurso vem sempre a seguir, o discurso sobre a revolução acontece na decadência da revolução. E ser europeu/português agora é estar preso num loop discursivo sem conseguir vislumbrar um modo de canalizar essa necessidade de transformação. É ter ficado refém de um vocabulário exausto que simplesmente não consigo parar de repetir e esvaziar como um boneco. É não ter visão nem capacidade de reinventar esse vocabulário.
Na Europa estamos à espera da visão, entalados entre o dilema das nações históricas e da união económica, o euro é uma trituradora, a herança colonial ainda destrói o mundo. Uma centena e meia de milhares de mortos na Síria, num conflito incompreensível para um europeu, que segundo Adam Curtis, e em relação à generalidade dos conflitos no médio oriente, foi transformado pelos media ocidentais numa narrativa simplista entre justiceiros e vilões. O exército Russo marcha sobre a Crimeia. A Hungria aprova leis racistas. Neonazis gritam palavras de ordem anti-semitas em Paris. Os portugueses voltam a saber o que é a fome e encolhem-se, voltam massivamente ao novo mundo e exoneram o imaginário latente do velho império quando o choque pela morte desse passado ainda pulsa e o seu luto está longe de ter terminado. As diferenças de classe voltam a acentuar-se. A classe trabalhadora foi desmantelada e por isso não tem um corpo coeso nem uma voz que se ouça. E entretanto, no espaço que resta, há os que gesticulam absurdamente enquanto outros simplesmente passam no caminho para casa onde vão ficar, de olhar absorto, em frente ao telejornal.
O longo plano do Casa a Arder em que a câmara fica estática a olhar para o Paulo, absorto em frente à televisão da sala, é como um espelho que reflete toda uma realidade desalinhada do seu problema à espera da visão que venha quebrar o feitiço que ainda a petrifica. – Daniel Barroca
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(C) imagens e texto: Cortesia do artista e Galeria Múrias Centeno, Lisboa, 2014.