Paulo Brighenti: A Grande Fogueira (com Maria Lino)
Appleton Square (Lisboa)
> 23.11.2013
A Grande Fogueira, título escolhido por Paulo Brighenti para a exposição que apresenta na Appleton Square, remete de imediato para uma imagem. Essa imagem constrói-se como símbolo do tempo, convocando aceções ambíguas a que as referências negativas não são estranhas. Na triagem cumprida pelo tempo, o que persiste ao esquecimento comum ou condicionado é sempre suscetível de recuperação, revisão, valorização. O título alude a essa condição.
Neste enquadramento, a morte da pintura proclamada sucessivamente ao longo do século XX e concertada com os discursos que na segunda metade do século declaram igualmente o fim da arte, tem um lugar central. Entre morte, luto e regresso, a prática de Paulo Brighenti é certamente posterior a tais polémicas. Longe de ruturas e retornos, podemos falar mais seguramente em continuidade. A permanência da pintura e do desenho é inevitavelmente marcada por uma carga histórica.
Como ponto de partida, nesta exposição são resgatadas obras de 2006 – 2012, às quais se associam outras inéditas. Trabalhos a aguarela, pastel seco, carvão e gravura convivem com objetos escultóricos da artista Maria Lino (1), num exercício que explora a noção de anacronia, conotada com o tempo impuro, e simultaneamente a contingência do instante efémero e finito.
Na tentativa de fixar imagens, Paulo Brighenti lida com as armadilhas e a falência da própria representação. Ocupando sem constrangimentos as fronteiras manobráveis da pintura e do desenho, afirma uma posição teórica que assenta em convicções enraizadas na prática (2). Como matriz, um aturado e obsessivo domínio de técnicas e materiais.
Desassociada de uma carga pejorativa, a repetição é por isso estruturante. A permanência da paisagem e de motivos recorrentes como o crânio ou flores, permite variações que se materializam na transferência de um médium para outro, como tradução de linguagens. Veja-se o exemplo das gravuras (tartaruga, rosas secas, pássaro morto, búzios). Evocando um conjunto de pinturas desenhadas (uma codificação prévia), as gravuras austeras, simplificadas e lineares perdem o referente original. Já não são cópia do objeto, mas antes de uma imagem, contrariando a função de representar o real.
Se existem cruzamentos evidentes entre pintura e desenho, são mantidos contudo, certos níveis de distinção. Entre o excesso e a contenção, a cor e a sua ausência, a mancha e a linha, desdobram-se dicotomias. Enunciados, os sistemas não se excluem, agem sem obliteração, descrevendo maior ou menor clareza.
Nas aguarelas de grande formato, a alteração de cores e a autonomização do fundo como espaço livre é um ponto relevante. A constante anulação da imagem direta, que até aqui determinava uma saturação e cancelava a visibilidade, dá lugar a tons claros e vibrantes. Ocupando a superfície, o ato de pintar consiste na manipulação de imagens, processo mecanizado pelo recurso à fotografia e pela rapidez de execução, sem lugar a correções. A recusa do gesto como movimento contínuo, substituído pela mancha curta, centra-se num código de cores que em negativo e com diferentes intensidades gera uma imagem difusa e atmosférica, plena de erros e deslizamentos. A própria natureza fragmentada do suporte reforça esse princípio e condiciona a legibilidade.
A possibilidade de estabelecer ligações com o que Jordon Kantor designou por “estética do fracasso técnico” (3), aludindo a uma linha formal e conceptual procedente das propostas pictóricas de Gerhard Richter e Luc Tuymans, não invalida o gosto pelo virtuosismo que é um tema na obra de Paulo Brighenti. A tensão gerada na distância que separa essas duas ideias, resolve-se afinal num exercício de mnemónica, que por via da associação, evidencia a íntima relação entre práticas, só aparentemente opostas.
– Ana Rita Salgueiro
+ info:
(C) imagens e texto: Cortesia de Appleton Square, Lisboa, 2013.
Notas do texto: