Verão Eterno de André Trindade e Filipa Cordeiro

O projeto Verão Eterno foi, recentemente, apresentado no espaço Lumiar Cité, em Lisboa. Entre 2 e 30 de Novembro poderá ser visto em Torres Vedras na Paços – Galeria Municipal. E, mais tarde, no Espaço Campanhã, no Porto, de 7 de Dezembro a 12 de Janeiro de 2014.

Um projecto Maumaus (Escola de Arte Visuais, Lisboa)

Com curadoria de Bruno Leitão

O trabalho de André Trindade e Filipa Cordeiro combina a cultura erudita com a cultura popular e lo-fi, tendo a história como pano de fundo e criando o confronto de ideias puristas derivadas do Modernismo com o ethos escatológico dos filmes de série B.

Verão Eterno é um projeto de Trindade e Cordeiro realizado ao longo de uma estadia de seis meses em Santa Cruz da Cabrália, uma pequena cidade brasileira localizada perto de Porto Seguro, no estado da Bahia. A exposição no espaço Lumiar Cité consistia numa instalação vídeo, numa escultura e numa cassete com a banda sonora desse mesmo vídeo. O vídeo narra uma história inspirada pela recente migração europeia para o Brasil, ao mesmo tempo que referencia a ideia de viagem para o paraíso. É acerca do escapismo e da vida no limite do capitalismo. É um conto de ficção científica lo-fi sobre a vida e a procura da felicidade, entre o exílio e a utopia.

A seguir, notas sobre a exposição por Carlota Gonçalves:

Desmantelar a Terra e as Imagens

“Verão Eterno” dos artistas André Trindade e Filipa Cordeiro, é uma vídeo instalação que se organiza a partir do piso térreo do espaço Lumiar Cité com um alinhamento de 6 pequenos cocos que projectam o visitante para um tempo, ou uma memória, pela forma escultórica que os objectos despertam. A luz da sala também foi pensada, ao colocar-se um vinil amarelo translúcido sobre o vidro da fachada (montra do espaço), acrescentou-se uma tonalidade mais quente ao ambiente. Acrescenta-se um objecto mais híbrido, meio mesa de suporte, meio decorativo, e uma cassete disponível com a banda sonora do filme, objecto integrante da matéria musical.

No 1º piso, num espaço recolhido que faz as vezes de uma nave imaginária, projecta-se o filme. O título “Verão eterno”, foi pedido emprestado a um documentário “The endless summer”, 1966, de Bruce Brown, sobre o surf e a procura da melhor onda pelo mundo fora. Sob o disfarce de um conto de ficção científica os autores lançam-se numa reflexão mais ampla e também livre do planeta. A síntese da ideia contida no título remete para este sítio perto do paraíso, este outro lugar que se impõe refazer, que se impõe pensar e recriar. À imagem do enunciado de um verão eterno, há uma natureza em estado de recomeço que se quer aparentar a qualquer coisa mais perene, menos tocável e perecível, que seja mais terra, menos dispersa, mais natureza e menos infraestruturada, enfim, mais unificada. Um lugar com mais silêncio e com mais estrelas.

Esta expedição ficcional, criação lo-sci-fi, projecta-se nas memórias de um passado, (previsão futurista para nós), que se constitui como matéria do percurso narrativo que conta uma história acontecida à humanidade. Uma história que foi buscar ao tempo, ao concreto, às migrações europeias para o Brasil, e a um incontestado desejo de evasão da globalizante dominação capitalista, motivos para a reinvenção de outras paisagens para o planeta, outros territórios de pensamento e permitir-se re-olhar o mundo.

O filme abre com o écran a negro e uma sonoridade electrónica envolvente, no plano ainda vazio, que se antecipa aos objectos e às coisas que vêm logo de seguida gravitar neste espaço, algures no universo. Momento com uma grande atmosfera plástica (1) como figura fílmica que carrega em si a sua presença formal. Assinala-se um visível embalamento, mais ou menos suspenso por esta peculiar deriva de coisas – bota, arbusto, balde – ao jeito de um prólogo. O último objecto é curiosamente uma máscara africana (uma chamada ao primitivismo, à dimensão mágica errante), que atravessa o plano, ao mesmo tempo que o planeta terra se ergue lentamente e desaparece sem se mostrar por completo. Do negro um som interpelativo dispara (literalmente), para se unir em mix com o som do mar. Chegámos à terra (nova). Ao paraíso. Um jovem atlético corre na areia, corre nas águas. É a partir desta paisagem que vai surgir a voz da narração sob uma perspectiva extra diegética suportada pela presença de um olhar extrínseco, que olha de fora e guia o espectador. Arranca assim: “A elegia para a vida do homem na Terra não foi de natureza linguística (…)”. O enquadramento e o movimento do plano sugere neste momento uma composição e uma encenação mais elaborada para um sistema narrativo, com uma personagem de destaque. (que se perderá na narrativa e reaparecerá mais tarde por instantes).

Na sua proposta ficcional “Verão Eterno”, reformula a memória do homem, e dá aos animais o papel dos novos arautos da linguagem na terra. Trata-se de um texto original, propulsor de sentidos, que vai atravessar o filme com a mesma voz off. A acrescentar ainda um momento de diálogo entre uma mãe e a filha. Uma cena particular na construção da mise-en-scène, e no discurso que fala de uma outra Europa, a lua de Júpiter – está-se no universo.

Uma carga experimental na natureza das imagens marca o tom geral que exibe uma certa fragilidade como se se quisesse operar mais profundamente um distanciamento com o real. As imagens mostram-se frágeis, desfocadas, com sobreposições, saltos, zooms e efeitos kitsch na montagem, reforçando um carácter testemunhal, e revelando uma figuração mais abstracta na representação. Fazem-se percursos pela natureza, palmeiras, céus e pássaros vão montando e compondo um quadro, mais ou menos idílico, que se vai sustentando a par da narração que ocupa um lugar espaçado mas contínuo, contando esta peculiar memória. Somos projetados numa nova biografia do mundo. Há na fantasia deste discurso, operadores de fragmentação, máquinas oblongas, entulho transformado em cimento, seitas que procuram descodificar sinais deixados pelos antigos homens da terra, etc. etc.

Planos imprevisíveis imiscuem-se na narrativa, como por exemplo, a própria artista Filipa Cordeiro no meio das palmeiras a erguer a perche. Este momento funciona como um sinal, com efeitos sincopados na montagem da imagem e som, (que não se importa de mostrar o efeito), acordando por instantes o espectador. Uma levíssima suspensão que se afirma, integrando o processo no dispositivo que se assimila ao discurso.

Há um percurso pela floresta em câmara subjectiva, coberto pela narração que continua a contar o desmantelamento da terra e a inteligência da natureza: “O restauro da horizontalidade é o principal empreendimento da natureza. O betão esmorece e as árvores o acolhem. É necessário que os séculos passem”. Surgirá depois um grupo de imagens com esculturas de índios contra um céu azul, o que parece ser um parque, um museu ao ar livre, que se vai cruzar com imagens found footage, indicadoras de mais memória. Nesta terra dançava-se em grupo na praia, festejava-se, comemorava-se. Uma sequência onde se plasma uma alegria permanente. Uma alegria retro. A figura de um homem mais velho no escuro, imagem actual, vem colar-se a estes fragmentos e criar um intervalo. Os artistas balançam a montagem com os momentos imersivos e outros de natureza mais descritiva, onde a imagem e a voz se produz em concordância. Uma slumship ou nave favela pairará no ar, isolada no plano e no discurso – novo efeito de embalamento que se submeterá à assimilação do tom geral. Como se os artistas puxassem fios que se vão unindo uns aos outros. Assinala-se outro grupo de imagens na cidade que delineiam um quadro apocalíptico pela presença de multidões, oradores loucos, e citações religiosas. Uma verdadeira pulverização de sinais que vão estabelecendo ligações, mais ou menos, perceptíveis.

Subsiste na construção de “Verão eterno” um olhar que coordena de forma curiosamente inteligível as imagens de um presente reconhecível, e cola-o a um discurso fantasista, sci-fi. Um acasalamento que não força o sentido mas encontra no efeito do real um compromisso de aproximação a uma realidade que necessita, apenas para alimentar a mecânica ficcional. Um real fetichizado que se refaz para novas dimensões.

Pode ver-se uma afinidade com o cinema sinestético de Youngblood (2) acesso a conteúdo sincrético (combinação das formas), através de um processo inarticulado consciente, que capta e percepciona imagens que se articulam no espaço-tempo contínuo e desencadeiam uma experiência contínua perceptual. O cinema sinestésico trabalha a imagem de forma a que esta se transforme em novas imagens: metamorfoses. Parece que André Trindade e Filipa Cordeiro criaram essas mesmas metamorfoses. Um mundo de imagens que se constrói e se desconstrói, alegórico e fantasista, um conto lo-sci-fi cheio de camadas, subtilezas e ironias, e onde capitalismo e escapismo parece que não rimam. Ou será que rimam?

(1) Gil, Inês, 2005, A Atmosfera como figura fílmica, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Lisboa. Conf., “Na atmosfera fílmica, parte-se do princípio que existem dois tipos de atmosferas: a primeira chama-se plástica porque diz respeito à forma da imagem fílmica, e aos elementos que constituem o seu espaço plástico. A segunda, é a atmosfera dramática, porque é expressa essencialmente a partir da diegese”, p. 142. 
(2) Youngblood, Gene, Expanded Cinema, Cap. Two: Syncretism and Metamorphosis: Montage as Collage, p. 85.

Autores do projecto:

André Trindade (Oeiras, 1981) vive e trabalha em Torres Vedras. Licenciou-se em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e participou no Programa Independente de Estudos das Artes Visuais da Escola Maumaus. Foi selecionado para o Prémio EDP Novos Artistas e o Prémio Fidelidade Mundial Jovens Pintores, obtendo em ambos uma menção honrosa. Mostrou o seu trabalho em exposições em diversas instituições, incluindo: Chiado 8, Museu da Eletricidade, Lunds Konsthall (Suécia) e MACUF (Espanha). Entre as residências artísticas em que participou, destaca-se o Programa de Residências de Artes Visuais da Galeria Zé dos Bois e o Residency Exchange Program da Allianz Foundation (Alemanha). Em paralelo, desenvolve o projeto de curadoria Dogma, no campo da publicação de textos e projetos de artistas nacionais e internacionais.

Filipa Cordeiro (Coimbra, 1988) vive e trabalha em Lisboa. Obteve a Licenciatura e Mestrado em Arte Multimédia pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Em 2013, é selecionada para a Bolsa Fulbright para Doutoramento e frequenta o Mestrado em Filosofia Geral da Universidade Nova de Lisboa. Nos últimos anos, trabalhou como assistente de produção e investigação no espaço Oporto e na Galeria Zé dos Bois. Entre a sua produção artística, destaca-se a participação no Programa de Residências de Artes Visuais da Galeria Zé dos Bois e a colaboração com André Trindade na pesquisa e desenvolvimento de projetos.

+ info:

Lumiar Cité

Maumaus

Paços – Galeria Municipal

Espaço Campanhã